Resumo: Este texto analisa algumas das alterações recentemente introduzidas no quadro regulatório da relação jurídica de emprego público e os seus possíveis impactos na Justiça Administrativa.
Palavras-chave: Artigo 4.º/4 b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; Artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas; Tribunais Administrativos; Jurisdição Administrativa; Vínculo de Emprego Público;
Sumário: 1- A regulação do trabalho em funções públicas; 2- A natureza do vínculo de emprego público à luz da Lei Geral do Trabalho em Funções públicas; 3- O âmbito da Jurisdição Administrativa face ao novo paradigma de emprego público.
Abstract: The text analises some of the recent alterations of the public employment relationship regulation and its (possible) impact on the Administrative Justice.
Key Words: Article 4/4 b) of Statute of the Administrative and Tax Courts; Article 12 of the General Labor Law on Public Functions; Administrative courts; Administrative judiciary regulation; Public employment relationship;
1. A regulação do trabalho em funções públicas
Antes de partirmos para a análise da natureza do vínculo de emprego público entendemos que é importante, nestas questões prévias estruturantes, deixarmos expressas algumas reflexões gerais sobre a regulação do trabalho em funções públicas, focando-nos, particularmente, na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas2 (doravante LGTFP).
O grupo de Madrid e os seus trabalhos, coordenados por ALAIN SUPIOT, apontaram, no seu relatório final, cinco vertentes essenciais das transformações sofridas no paradigma laboral, sendo uma dessas vertentes a intervenção dos poderes públicos3, que foi o domínio em que, segundo o relatório da comissão, ocorreram as maiores mudanças nos vários países europeus nos últimos anos. Neste domínio podemos dizer que existe um apagamento dessa intervenção, com uma crescente desregulamentação do sector, a benefício de uma particularização das condições de trabalho, que contraditoriamente, vem associada a um processo evolutivo e progressivo de aproximação da regulação do contrato de trabalho em funções públicas com o regime laboral privado4. Assim, assistimos a um conjunto de alterações que trouxeram uma “reformulação, que «laboralizou» ou privatizou a relação jurídica de emprego público” 5. No entanto é de notar que, em nosso entender, deve utilizar-se o termo laborização porque, seguindo SABINO CASSESE6, o termo privatização é errado e abusivo neste contexto já que é impossível haver privatização do emprego público porque o emprego com o Estado como empregador será sempre pela sua natureza público, não podendo essa sua natureza intrínseca ser modificada.
O processo de laboralização da relação de emprego público, naturalmente, tem causas que se devem analisar. Em nosso entender, há um de conjunto de seis factores, interligados e interdependentes numa lógica de cascata, que são sintomáticos de uma aproximação clara entre o trabalho subordinado na administração pública e o regime laboral comum. O primeiro factor, como bem assinala PEDRO MADEIRA DE BRITO7 na sua Tese de Doutoramento, foi “o recurso da administração a formas jurídico-privadas de actuação ao nível dos recursos humanos” que levou a que a administração pública aceitasse pessoal com contratos de trabalho, o que trouxe a introdução de regras do direito do trabalho no regime de emprego público (com vista à flexibilização do emprego público – já que, por exemplo, isto traz uma maior facilidade na constituição e extinção de situações jurídicas, uma maior flexibilidade organizativa interna, uma despolitização, uma atenuação da tutela e uma limitação da responsabilidade pública).
O segundo factor, sublinhado por PAULO OTERO8 e, também, por MADEIRA DE BRITO9, liga-se ao fenómeno da laboralização ou privatização em sentido próprio da função pública, que se traduz no processo em que o próprio enquadramento da actividade administrativa procurou com a fuga para o direito privado, formas mais flexíveis de actuação que, no domínio do trabalho subordinado, tiveram como resultado a utilização das regras do direito do trabalho10. Dois exemplos são sintomáticos desta realidade associada a este factor. Por um lado, o facto de no âmbito dos fenómenos colectivos ter havido o reconhecimento de direitos sindicais dos trabalhadores, da negociação colectiva e da greve, que mostram que este é um importante pólo de atracção das regras laborais comuns11. Por outro lado, outro exemplo é a admissão da figura do contrato a termo certo como forma de constituição da relação de emprego público pelo Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro12, ainda que inicialmente, como assinala LÍCINIO LOPES MARTINS13, fosse excepcional em face do contrato de provimento e do acto administrativo de nomeação14.
O terceiro factor (que nos surge interligado com os dois anteriores factores) prende-se com o crescimento da administração e a ampliação material das suas tarefas que levaram, também, a uma alteração da consciência sócio-profissional dos funcionários da administração15. O quarto factor prende-se com o facto de as fontes internacionais, particularmente aquelas no quadro da OIT e do Direito da União Europeia, têm acentuado a indistinção entre os trabalhadores da administração pública e os de regime laboral comum16.
O quinto factor, seguindo MENEZES LEITÃO17, prende-se com uma primeira vaga de reformas legislativas, levadas a cabo pelos XV, XVI, XVII e XVIII Governos Constitucionais18, que trouxe uma ténue (mas clara) aproximação ao regime laboral comum em duas fases, devendo referir-se, numa primeira fase, o Código do Trabalho de 2003 que no artigo 6.º da sua Lei Preambular (que previa a aplicação do disposto no código, nos termos previstos em legislação especial, aos trabalhadores de Pessoas Colectivas Públicas que não fossem funcionários ou agentes da administração pública, mas respeitando os princípios gerais em matéria de emprego público) e o Regime Jurídico do contrato individual de trabalho da administração pública que consta na Lei n.º 23/2004 de 22 de Junho (que no fundo cria no nosso ordenamento jurídico a tal legislação especial referida pelo artigo 6.º da Lei Preambular do Código do Trabalho de 2003 e que cria “um regime laboral adaptado ao ambiente público”19, fazendo com que, como bem assinalam LICÍNIO LOPES MARTINS20 e MIGUEL BETTENCOURT DA CAMARA21, por via de uma delimitação negativa houvesse uma “ideia de o regime regra na Administração Pública ser- de iure condito- o do contrato de trabalho”, particularmente “ao sector da administração clássica directa ou indirecta” 22) e posteriormente em 2008, numa segunda fase, a Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro (que estabeleceu os Regimes de vinculação, de carreiras e de remuneração dos trabalhadores que exercem funções públicas, remetendo grande parte do regime deste contrato para um Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, demonstrando que se pretendeu “substituir, como modelo geral e transversal a toda a administração pública, o tradicional modelo estatutário-legal de função pública por um modelo predominantemente contratualizado” 23, mitigando-se grandemente a ideia tradicional de estabilidade do emprego público com a substituição dos quadros de pessoal pelos mapas anuais de pessoal) e o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas consagrado na Lei 59/2008 (que praticamente decalcou o regime do Código do Trabalho de 2003 e o aplicou a estes contratos, trazendo um “abandono do estatuto especial do emprego público” 24) vieram objectivamente, como assinala LIBERAL FERNANDES25, trazer uma mudança profunda que fez com que o modelo estatutário ou legal da função pública fosse substituído por um regime quase contratualista26.
O sexto factor liga-se a uma lógica reformista assente em “razões de eficiência da actuação administrativa (em ligação com novos modelos de gestão pública) e de poupança de recursos com o seu pessoal” de certo modo decorrente do memorando de entendimento com a Troika que impôs, na sequência de um grave contexto económico-financeiro, severas restrições à despesa pública e implementada pelo XIX Governo Constitucional, assentando numa lógica de “menos estado melhor estado” e de reconfiguração das funções sociais do Estado27.
Estes seis factores levam-nos, pois, a considerar que, hoje, se assista a “um gradual reconhecimento de equivalência de posições jurídicas entre os trabalhadores comuns e os trabalhadores subordinados da administração pública” 28 que faz com que, como assinala PALMA RAMALHO29, a questão da intersecção do regime do emprego público com regime laboral comum seja uma tendência irresistível ou incontornável. Deste modo, podemos a concluir que todos estes factores foram a base e justificação para o surgimento da LGTFP que, num único diploma, mais não fez do que culminar o processo de Reforma (iniciado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2004) que, em termos práticos, trouxe a sujeição efectiva e praticamente total da Relação Jurídica de Emprego Público ao regime laboral comum, ressalvando apenas as especificidades da função e da natureza pública do empregador com a salvaguarda do estatuto constitucional da função pública. Quando dizemos isto não estamos a dizer que concordamos com a solução (porque muitas são as nossas interrogações e críticas quanto a esta situação), porém certo é que em termos práticos, hoje, alguma Doutrina vem afirmando que, com a nova LGTFP, podemos dizer que terminou a longa caminhada da relação jurídica de emprego público “para um direito comum do trabalho, pautado por uma osmose regimental” 30 que se traduz numa “uniformização do quadro contratual dos trabalhadores por conta de outrem, tenham eles por empregador uma entidade privada ou uma entidade empregadora pública” 31. Assim, de tudo o que se disse, fica claro que, embora alguma Doutrina32 divirja, a verdade é que a LGTFP foi o culminar de um (longo) processo que trouxe o abandono de um sistema de carreira e a implantação, no quadro da administração pública, de um sistema de emprego33. Note-se, no entanto, que, seguindo VASCO PEREIRA DA SILVA34, todo este processo deve ser encarado como sendo “a criação de um novo paradigma de vinculação jurídico-pública, que tenta conciliar a flexibilidade dos instrumentos de direito privado com as exigências de prossecução do interesse Público” ou seja no fundo capturam-se as soluções próprias para o direito público, trazendo uma privatização das soluções, mas não uma privatização material já que ainda que haja uma inquestionável fuga para o direito privado, não há (nem poderia haver) uma fuga “às vinculações jurídico-públicas, nem à prossecução dos fins próprios da função administrativa”, daí que, como assinala SABINO CASSESE35, seja irrealista falar-se numa unidade de regulação (que neste processo é fictícia).
2. A natureza do vínculo de emprego público à luz da Lei Geral do Trabalho em Funções públicas
A LGTFP vem estabelecer (nos termos do seu artigo 6.º) que o Trabalho em Funções Públicas pode ser prestado mediante um Vínculo de Emprego Público ou um Contrato de Prestação de Serviços (este não será objecto da nossa análise). O mesmo artigo 6.º define que o vínculo de emprego público é aquele pelo qual uma pessoa singular presta a sua actividade a um empregador público, de forma subordinada e mediante remuneração, podendo ser constituído por tempo indeterminado ou a termo resolutivo e podendo ter três modalidades distintas (contrato de trabalho em funções públicas, nomeação e comissão de serviço). Deste modo, antes de discorremos sobre a nossa posição sobre a natureza do vínculo de emprego público temos aqui, previamente, de identificar e analisar quatro elementos caracterizadores do vínculo de emprego público.
O primeiro elemento é a prestação de trabalho, que se trata de uma prestação de uma actividade humana (seja ela intelectual ou manual), correspondendo a uma prestação de facto positivo (pois o trabalhador promete apenas a sua actividade, obrigando-se a desenvolver em ordem a atingir o fim pretendido, ainda que a não obtenção desse fim seja um risco do empregador, havendo uma obrigação de meios) e portanto a prestação do trabalhador assume um carácter continuado36 (pois o trabalhador põe à disposição do empregador público por um certo lapso de tempo especifico a sua actividade e por isso a existência de períodos de inactividade não afecta a natureza da prestação do trabalhador na medida que se mantenha na disponibilidade do empregador durante esse período)37.
O segundo elemento é o pagamento de remuneração que, como assinalam ANA NEVES38 e CLÁUDIA NUNES39, se trata de uma contrapartida patrimonial pela actividade subordinada prestada pelo trabalhador ou pela sua disponibilidade (havendo pois um nexo sinalagmático entre ambas) e que é uma prestação de dare (porque aqui o seu cumprimento analisa-se pela entrega de um bem), uma prestação pecuniária ou parcialmente pecuniária (porque podem ser determinadas prestações não-pecuniárias desde que sejam avaliáveis em dinheiro) e é uma prestação periódica (porque se renova sucessivamente ao longo do tempo)40.
O terceiro elemento é a subordinação jurídica, um elemento-chave para distinguir o Vínculo de emprego público do contrato de prestação de serviços (onde vigora uma lógica de trabalho autónomo)41. Este elemento resulta do facto de a situação jurídica dos trabalhadores da Administração Pública ter subjacente a existência de um vínculo (que, como veremos mais à frente, pode ser um contrato ou não42), o que, consequentemente, faz com que haja uma organização que exige para o seu correcto funcionamento uma inserção do trabalhador de modo a que se revele uma heterodeterminação da prestação realizada. Deste modo, como sublinha MADEIRA DE BRITO43, será trabalhador subordinado “aquele que, mediante retribuição, realiza pessoal e continuadamente uma actividade numa organização predisposta e dirigida pelo empregador” (sendo que a organização neste caso será a própria administração pública), assim a subordinação jurídica traduz-se na sujeição do trabalhador à autoridade e direção do empregador público, que goza por isso de um poder de conformação da prestação do trabalhador, através de comandos e instruções, definindo como, quando, onde e com que meios deve aquela ser executada e competindo-lhe ainda o exercício do poder disciplinar44. Porém importa referir que esta subordinação jurídica não afecta a autonomia técnico-profissional do trabalhador (sendo que nesta lógica o artigo 71.º/1 e) LGTFP refere expressamente a obrigação do empregador público respeitar a autonomia técnica do trabalhador que exerça actividades cuja regulamentação ou deontologia profissional a exija), não obstante de lhe serem impostos um conjunto de deveres gerais no exercício da sua actividade (artigo 73.º LGTFP), bem como um regime de incompatibilidades e impedimentos (artigos 19.º a 24.º LGTFP).
O quarto elemento diz respeito às três modalidades do vínculo de emprego público. Quanto ao Vínculo de nomeação há que notar que se encontra regulado no artigo 8.º LGTFP e existe quando está em causa o exercício, a título principal e regular, de funções de soberania ou funções de autoridade pública, podendo ter carácter indeterminado ou transitório e sendo regulado por um regime jurídico específico, distanciando-se assim do regime laboral comum45. Quanto à comissão de serviços há que notar que se encontra regulado no artigo 9.º LGTFP e existe (taxativamente) em certas situações específicas como o exercício de cargos não inseridos em carreira – isto é que o cargo objecto da comissão não corresponda a um posto de trabalho permanente na Administração, como são os cargos dirigentes e certos cargos em que é valorizada a confiança pessoal ou técnica- e a aquisição de certa qualificação profissional por parte de quem tem uma relação jurídica de emprego público constituída por tempo indeterminado, estando em causa uma lógica transitória, precária ou reversível46. Quanto ao Contrato de Trabalho em funções Públicas, nos termos do artigo 7.º LGTFP, constitui o vínculo-regra e residual das relações de emprego na Administração Pública e trata-se, segundo CLÁUDIA NUNES47, de “um acto bilateral celebrado entre um empregador público, com ou sem personalidade jurídica, agindo em nome e representação do Estado, e um particular, nos termos do qual se constitui uma relação de trabalho subordinado”, sendo que, como assinalam PAULO VEIGA E MOURA48 e MENEZES LEITÃO49, a grande maioria dos trabalhadores da administração exerce funções predominantemente técnicas é esta a modalidade comum de constituição do Vínculo de emprego público.
Assim, feito este enquadramento definitório geral, podemos partir para análise da natureza do vínculo de emprego público. E neste quadro temos de analisar previamente a natureza de cada uma das modalidades. Quanto ao Vínculo de Nomeação, seguindo ANA NEVES50, a formação da relação jurídica ocorre por acto administrativo (sujeito a certa forma e formalidades) cuja eficácia assenta na aceitação51 , sendo que o modo como se desenrola traz um distanciamento da teoria unilateral (na explicação da natureza jurídica da relação de emprego titulada pela nomeação), uma aproximação à teoria contratual (pela importância que é reconhecida ao consentimento do particular e pela tutela da autonomia colectiva) e uma convergência com a teoria legal ou regulamentar (por ser escassa a influência do trabalhador na conformação do respectivo objecto). Quanto à comissão de serviços, em coerência com o que havíamos defendido quanto à nomeação e seguindo de perto a posição de FERNANDA PAULA OLIVEIRA e FIGUEIREDO DIAS52, entendemos que a formação da relação jurídica ocorre por acto administrativo (sujeito a certa forma e formalidades) cuja eficácia assenta na aceitação (neste caso formalizada no termo de posse)53. Por fim, quanto à natureza do Contrato de Trabalho em Funções Públicas estamos perante uma questão muito discutida (ainda que, como assinala MADEIRA DE BRITO54, se confunda a natureza do contrato de trabalho em funções públicas com a natureza do próprio vínculo de emprego público) e em que se podem adoptar três posições (muitas deles proferidas no quadro da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro): parte da Doutrina (que inclui LEAL AMADO55, ANA NEVES56 e VERA ANTUNES57) considera que estamos perante uma relação jurídica\ contrato de natureza híbrida ou mista de feição predominantemente privada, já que embora haja uma aproximação substancial clara ao regime laboral comum a verdade é que continuamos (formalmente) a estar no campo do Direito Público e além disso aqui existe a especificidade de o empregador ser o Estado ou outra pessoa colectiva pública (integrada no âmbito da administração directa ou indirecta, central, regional ou local); por outro lado uma outra parte da doutrina (que inclui MONTEIRO FERNANDES58, MENEZES LEITÃO59 e PALMA RAMALHO60) entende que estamos perante um contrato de trabalho com regime especial já que neste contrato estamos num claro quadro de privatização da relação jurídica do emprego pública em que existe uma verdadeira osmose regimental e uma uniformização contratual que deixa de ter em conta a especificidade do empregador, pondo em causa o clássico unilateralismo subjacente ao emprego público; e finalmente noutro campo ainda é possível considerar que estamos perante um Contrato Administrativo (que era a natureza expressamente consagrada no artigo 9.º/3 Lei n.º12-A/2008, de 27 de Fevereiro e que é defendido, com base nessa norma, por FREITAS DO AMARAL61, VIEIRA DE ANDRADE62, MARCELO REBELO DE SOUSA63 e ANDRÉ SALGADO MATOS64) ou, como entende SUZANA TAVARES DA SILVA , perante um contrato administrativo com regime especial. Pela nossa parte, entendemos que esta não é uma questão de fácil resposta já que se insere num contexto de “crise de identidade do Direito Administrativo”65 e se trata de um novo problema do Direito Administrativo66, mas, em nosso entender, aqui está em causa um contrato administrativo com regime especial. Embora esta posição fosse mais fácil de defender em face da antecessora da LGTFP (já que expressamente a lei definia o contrato aqui em discussão como administrativo67), não nos parece ser uma posição impossível de defender já que, como dissemos anteriormente, a LGTFP (ao contrário do que assinala a 2ª tendência anteriormente apresentada) trouxe a criação de um novo paradigma de vinculação jurídico-pública que, ainda que praticamente mimetize as soluções consagradas no Direito Laboral Comum em relação ao contrato individual de trabalho, adapta tais soluções às vinculações jurídico-públicas que se lhe impõem e à prossecução dos fins próprios da função administrativa, além do mais, por um lado, como assinala VIEIRA DE ANDRADE68, o contrato de trabalho em funções públicas, embora tenha uma certa proximidade em face do contrato individual de trabalho, é, ainda assim, claramente autónomo em face deste contrato (no mínimo esta autonomia manifesta-se na sede de regulação formal e material das duas figuras, que é distinta) e, por outro lado, há um conjunto de especificidades deste contrato em face do contrato individual de trabalho69, sendo de assinalar, por exemplo, a sujeição dos Trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas a um regime disciplinar específico (consagrado no Capitulo VII e que, embora possa conter alguma inspiração nas soluções do direito laboral comum, é distinta do regime disciplinar do Código de Trabalho), também, as especificidades existentes em relação à remuneração (constantes do Capítulo VI da LGTFP) que demonstram uma influência decisiva e mais intensa do Princípio da Legalidade “como vector conformador da actividade da administração”70, o que marca uma enorme diferença em relação ao regime da retribuição do Direito Laboral comum ou ainda, como assinalam SABINO CASSESE71 e ANA NEVES72, as especificidades (que se mantêm na LGTFP- ainda que por vezes atenuadas) decorrentes do postulado clássico de que o Contrato de trabalho em funções públicas se estabelece tendo em vista a prossecução do interesse público (o que impõe, por exemplo, certos deveres específicos aos trabalhadores da administração pública, torna mais intensos os deveres de lealdade, isenção e imparcialidade, existentes em relação a todos trabalhadores e permite um certo unilateralismo por parte do empregador). Por fim, como assinalam MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS73, o facto do artigo 4.º/2 a) do Código dos Contratos Públicos (doravante CCP) nos dizer que o CCP não é aplicável a este contrato não enfraquece esta qualificação já que a “administratividade” do contrato e relevância para o direito administrativo são claras e mais intensas extensas do que as existentes noutros contratos públicos74 e além do mais há muito que a doutrina vem reconhecendo que podem haver contratos administrativos não regulados pelo CCP (podendo ser típicos- e regulados por regimes especiais- ou atípicos), portanto é, para nós, inequívoco que estamos perante um contrato administrativo que é especial porque, embora lhe esteja subjacente uma lógica híbrida que colhe inspiração nas soluções de direito privado, toda a sua base assenta no direito público (que lhe traz uma natureza distinta do contrato individual de trabalho), o que, mantendo algumas especificidades próprias, assegura a flexibilidade exigida no contexto dos serviços administrativos e da nova organização e gestão pública (o chamado new public management )75.
Feito este breve escurso pelos quatro elementos cabe agora analisar a natureza do Vínculo de Emprego público que no fundo corporiza aquilo que antes da LGTFP era designado como relação jurídica de emprego público (e que é um aspecto descurado pela generalidade da doutrina). Importa assinalar, na esteira do pensamento de ANA NEVES76, que, independentemente da posição que se adopte nesta matéria, existe um elemento fundamental (não referido expressamente pela LGTFP) que é o chamado “mínimo denominador comum de regime jus-publicista” que rege o Vínculo de Emprego Público (independentemente da sua disciplina jurídica ser de direito administrativo ou de Direito Laboral comum), que decorre do facto de o empregador público ser o guardião do interesse público e o garante da satisfação de necessidades colectivas e de tutela de direitos fundamentais e que corresponde aos princípios constitucionais referentes ao emprego público (tais como, por exemplo, o da igualdade de acesso, o da garantia da audiência e de defesa em procedimento disciplinar, o da subordinação dos trabalhadores à prossecução dos interesses públicos a cargo do empregador público, entre outros). É de notar que várias posições podem aqui ser adoptadas. Por um lado, podemos referir a posição do Sr. Professor MADEIRA DE BRITO77 que afirma que o vínculo de emprego público se trata de um contrato de trabalho especial da Administração Pública essencialmente por três razões: Em primeiro lugar, porque o carateriza este contrato é a subordinação jurídica com todas as consequências que dela advêm, porém a natureza do empregador impõe um conjunto de especificidades que têm de ser conjugadas com um regime de emprego público (que ainda que queira parecer estanque) não disfarça o mimetismo das soluções em relação às soluções do Direito laboral comum e a clara influência dos princípios de direito de trabalho; Em segundo lugar, porque, embora tenha havido um conjunto de alterações do regime do emprego público que trouxeram aproximação ao direito laboral comum, a verdade é que, embora esteja aqui uma lógica contratual onde há uma tendencial auto-regulamentação, há alguns aspectos em que tem de haver uma hétero-regulamentação; Em terceiro lugar, porque aqui existe uma ponderação dos interesses em presença que parte da natureza pública do empregador e que faz com que, embora esteja em causa um contrato de trabalho (em que vigora uma tendencial autonomia), haja um maior número de restrições e uma maior intervenção da Lei em relação a estas relações de emprego público. Apesar da qualidade dos argumentos apresentados, esta posição não serve porque parte do postulado de que todas as modalidades do vínculo de emprego público têm uma natureza contratual (de contrato individual de trabalho), o que, como anteriormente assinalámos, não é de todo verdade. Por outro lado, SUZANA TAVARES DA SILVA78 defende que estamos perante uma relação jurídica laboral típica (ainda que com especificidades decorrentes do Direito Administrativo), já que há uma administrativização do direito privado e uma laboralização do direito administrativo. Com a devida vénia, não podemos concordar com esta qualificação por todos os argumentos que aqui temos vindo a elencar e particularmente pelas três razões aduzidas por MADEIRA DE BRITO que demostram claramente que aqui não há um contrato de trabalho típico, sendo desde logo evidente que para que tal acontecesse era necessário que houvesse um contrato em todas as modalidades do vínculo de emprego público (o que não existe, como já dissemos) e que houvesse a aplicação dos princípios de direito do trabalho no âmbito da situação jurídico-laboral, que é algo não acontecesse por existirem um conjunto de especificidades. Por fim, existe ainda a posição de FERNANDA PAULA OLIVEIRA e de FIGUEIREDO DIAS79 que, embora sem grande base argumentativa, entendem que estamos perante uma relação fundada em acto administrativo ou em contrato administrativo, integrando-se esta relação no conceito de relação jurídica administrativa. Pela nossa parte estamos totalmente de acordo com a última posição e entendemos que o vínculo de emprego público assume a natureza de relação jurídica administrativa já que, seguindo o pensamento de VASCO PEREIRA DA SILVA80 e de ALEXANDRA LEITÃO81, estamos perante uma relação social entre dois sujeitos de direito (o Empregador Público e o trabalhador), visando a prossecução do interesse público, regulada essencialmente por normas de Direito Administrativo (que é algo inequívoco em face da LGTFP que consagra normas de Direito Administrativo e é um diploma que na sua essência tem a natureza de direito administrativo), e cujo conteúdo são as situações jurídicas activas e passivas dos sujeitos envolvidos, surgindo por via de um acto administrativo (no caso da nomeação ou comissão de serviços) ou em contrato administrativo (no caso do Contrato de Trabalho em funções públicas) e tendo “por conteúdo direitos e deveres previstos na Constituição e nas leis, ou decorrentes de contrato, ou de actuação unilateral da administração” 82.
3. O âmbito da Jurisdição Administrativa face ao novo paradigma de emprego público
Apesar das muitas alterações no campo da regulação do emprego público impostas pela LGTFP, quase nada se alterou no tocante ao âmbito da jurisdição competente para dirimir litígios ligados ao vínculo de Emprego Público. Quanto a este âmbito de Jurisdição duas normas têm de ser referidas (e ser, sempre, conjugadas). Primeiro, temos o artigo 4.º/4 b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) que tem uma dupla dimensão. Por um lado, vem sujeitar à jurisdição dos tribunais judiciais a apreciação dos litígios emergentes de contratos individuais de trabalho na administração pública (a termo ou por tempo indeterminado) que não constituam vínculo de emprego público, havendo pois a introdução de uma verdadeira restrição ao critério da relação jurídica administrativa (um desvio para menos), excluindo-se, assim, do âmbito da jurisdição administrativa este tipo de litígios que se assim não fosse nele estariam integrados porque seriam qualificados como contratos administrativos e por essa via submeter-se-iam à Jurisdição dos Tribunais Administrativos83. Por outro lado, o mesmo artigo 4.º/4 b) do ETAF, vem determinar a sujeição à jurisdição administrativa dos litígios emergentes do Vínculo de Emprego Público, celebrados ao abrigo da LGTFP. Em segundo lugar, devemos ter em conta o artigo 12.º LGTFP que reafirma a lógica do artigo 4.º/4 b) do ETAF (aliás, em termos idênticos84 aos que constavam no artigo 10.º da antecessora e revogada Lei 59/2008, de 11 de Setembro e no artigo 83.º da antecessora e revogada Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro). Importa, porém, referir duas notas quanto a estas duas normas. Em primeiro lugar, é de assinalar que o artigo 4.º/4 b) do ETAF apenas vem introduzir uma simples alteração terminológica em face do anterior artigo 4.º/3 d), que é de saudar já que ao utilizar-se o termo vínculo de emprego público congrega-se, numa lógica de concentração, nesta alínea todas as modalidades de constituição de vínculo de emprego público e não, apenas, o contrato de trabalho em funções públicas (como acontecia no anterior ETAF). Em segundo lugar, deve, no entanto, assinalar-se que até ao penúltimo anteprojecto da LGTFP o conteúdo proposto para o artigo 12.º da LGTFP não era igual aquele que veio a ser consagrado na versão final da LGTFP, já que aí se previa uma sujeição dos litígios emergentes dos vínculos de emprego público à jurisdição dos tribunais de trabalho (salvo no tocante à apreciação da invalidade do vínculo que eram sujeitos à jurisdição administrativa), que era uma solução que traria uma total “uniformização do quadro contratual dos trabalhadores por conta de outrem” e uma solução divergente com o ETAF (que revogaria o artigo 4.º/3 d)), porém esta foi abandonada pelo governo por duas grandes razões: Porque, como assinalou recentemente FAUSTO DE QUADROS85, houve uma forte oposição por parte dos membros da comissão da reforma do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e do ETAF (já que esta solução divergia em toda a linha daquelas que a comissão pretendia alcançar com a Reforma do Contencioso Administrativo); e porque esta alteração gerou uma forte oposição por parte das estruturas sindicais em sede de concertação social86.
Portanto, deste artigo 4.º/4 b) do ETAF resulta uma dualidade jurisdicional entre contratos, que é indesejável e cria uma ““esquizofrenia” jurisdicional”87 no domínio da contratação pública (mais concretamente, no contencioso laboral administrativo). Ora, esta “esquizofrenia” jurisdicional manteve-se com as Reformas do contencioso administrativo e do emprego público, mas é uma situação que, em nosso entender, poderá num futuro próximo ter fim à vista e que deverá ser alterada em futuras reformas, já que o artigo 12.º do anteprojecto da LGTFP, independentemente do mérito da solução que consagrava, nos demonstrou que nesta matéria podia haver outra solução e uma alteração do modelo actualmente em vigor. Porém, esta proposta, que acabou por não ir por diante, mostrou-nos, também, que uma alteração do âmbito da jurisdição no quadro do emprego público só será possível se for precedida de um amplo debate e que o estado actual da discussão na doutrina mostra bem que esta é uma questão não discutida e que qualquer alteração do actual modelo seria arbitrária e não consensual, levando a que o legislador assumisse o papel de legislador ideológico que impõe soluções legais à margem do contexto social e doutrinário que o rodeiam e que o levam a assumir posições que lhe estão absolutamente vedadas.
Neste debate, a nosso ver, certo é que só existem três caminhos possíveis: Ou se mantém esta solução dualidade de jurisdição; Ou se transfere para a jurisdição administrativa e fiscal todo o Direito Laboral Administrativo, o que inclui todas as relações de trabalho inerentes ao exercício da função administrativa, independentemente dos respectivos estatutos e regimes jurídicos; Ou se transfere para a jurisdição dos tribunais de trabalho os litígios emergentes de vínculo de emprego público, ficando todo o Direito Laboral Administrativo debaixo da Jurisdição Comum.
Na primeira solução assumiríamos uma posição intermédia que mantinha esta dualidade de jurisdição, nos termos consagrados pelo actual ETAF. Defendendo esta posição temos MADEIRA DE BRITO88. Num primeiro momento, em relação à introdução dos litígios emergentes de vínculo de emprego público, afirma MADEIRA DE BRITO89 que é inquestionável que os litígios emergentes das relações de trabalho subordinado na administração pública, constituídas por uma das formas previstas na LGTFP, devem ser submetidas aos tribunais da jurisdição administrativa (referindo o Professor o artigo 83.º da revogada Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que, como já assinalámos anteriormente, corresponde parcialmente ao conteúdo do 12.º LGTFP) e acrescenta ainda que “perante a previsão de uma competência especializada constitucionalmente moldada, nos termos do artigo 212.º/2, da Lei Fundamental, sobre o conceito de relação jurídica administrativa, refletida no artigo 1.º do ETAF e densificada no artigo 4.º, a solução face à natureza jurídica da relação de emprego público e à qualificação legal, por exemplo, do contrato como de natureza administrativa, não poderia ser outra que não a da submissão dos litígios emergentes da relação de emprego público à jurisdição administrativa”90, sendo por isso para o Professor a norma do artigo 83.º da Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro (actual art. 12.º LGTFP) uma mera explicitação que confere certeza jurídica. Num segundo momento, quanto à exclusão do âmbito da jurisdição administrativa dos contratos individuais de trabalho (reguladas pelo Regime Laboral Comum), MADEIRA DE BRITO91 afirma que ela ocorre pelo facto de o artigo 4.º do ETAF ser feito com desvios “para mais e para menos” em relação critério constitucional da relação jurídica administrativa e aqui temos um desvio “para menos” que é justificado por “a jurisdição administrativa não estar (como não está) preparada para litígios que exigem um rito próprio para os quais os tribunais de trabalho estão vocacionados”. Apesar de tudo isto, num terceiro momento, o Sr. Professor92 sublinha e critica, em relação às situações de trabalho subordinado na administração pública, “a falta de formas processuais adequadas e de uma jurisdição adequada” para evitar “a má aplicação da justiça num sector tão importante como o referido”.
Na segunda solução teríamos um alargamento da jurisdição administrativa cabendo nela todo o Direito Laboral Administrativo e não apenas os litígios emergentes do vínculo de emprego público, prevalecendo, pois, um critério da função administrativa. Esta é claramente a solução defendida pela maioria da Doutrina, sendo defendida (de forma mais ou menos clara) por VASCO PEREIRA DA SILVA93 , VIEIRA DE ANDRADE94, PAULO VEIGA E MOURA95, ANA NEVES96 e BETTENCOURT DA CAMARA97, e pela CGTP93 em sede de concertação social (no quadro da discussão do anteprojecto da LGTFP). Várias são os argumentos e razões invocadas para defesa desta solução. O primeiro argumento tem uma natureza sistemática e prende-se com o facto de esta ser a solução que melhor evita o “imbróglio interpretativo” resultante da difícil conciliação da LGTFP e do ETAF e particularmente na conjugação entre os artigos 4.º/4 b) e o 4.º/1 e) do ETAF que levam a que haja um autêntico paradoxo em que, por via do artigo 4.º/4 b) os litígios emergentes de um contrato individual de trabalho na administração pública em sentido amplo (regulado pelo Código do Trabalho) fiquem sujeitas à jurisdição dos tribunais comuns, porém se esse mesmo contrato for precedido de um procedimento administrativo já será competente a jurisdição administrativa para dirimir os litígios daí emergentes (e referentes à formação do contrato), o que traz uma lógica contraditória que traz um “dilema hamletiano”, entre ser ou não ser administrativo, para efeito da determinação da jurisdição competente.99 O segundo argumento de natureza processual, referido por VEIGA E MOURA100 e (de forma aprofundada) por BETTENCOURT DA CAMARA101 , que entendem que a exclusão dos Contratos de trabalho (regulados pelo Código de Trabalho e em alguns casos pela LGTFP) da Jurisdição administrativa traz um esvaziamento do foro administrativo porque não estamos a falar de uma pura e simples relação jurídica de direito privado idêntica à que existe na contratação de trabalhadores por empregadores particulares, estamos, sim, a falar de uma relação contratual laboral que apesar de tudo deve ser qualificada como relação jurídica administrativa em termos subjectivos (porque nesta relação intervém a Administração), objectivos (porque a relação jurídica administrativa é regulada pelo Direito Administrativo, ainda que privatizado e com elementos de Direito Privado) e funcionais (porque está em causa o desempenho da função administrativa, de natureza iminentemente pública). O terceiro argumento assume uma natureza prática e afirma que esta solução é a mais adequada porque traz uma maior celeridade processual e traz um maior respeito pelas especificidades da função administrativa e da organização judiciária.102 O quarto argumento assume uma natureza política (embora encapotada de uma natureza prática), tendo sido o principal argumento assumido pela CGTP no quadro das negociações da LGTFP e que no fundo vem assumir a essencialidade da intervenção dos Tribunais Administrativos em todos os litígios referentes ao emprego público, assumindo um sentimento de desconfiança em relação à magistratura do foro comum justificado pelo facto de, no entender da CGTP, a realidade prática demonstrar que a magistratura do foro comum tendencialmente toma decisões mais parciais e mais favoráveis ao lado do empregador, o que traria uma obstrução à apreciação imparcial dos litígios e traria um grande prejuízo e desproteção dos trabalhadores103. O quinto (e último) argumento assume a natureza substantiva e liga-se, segundo BETTENCOURT DA CAMARA104, ao facto de se puder afirmar que na solução actualmente em vigor está em causa uma inconstitucionalidade por violação do artigo 269.º Constituição da República Portuguesa (em diante designada por CRP), já que este preceito constitucional impunha a existência de outros limites à privatização da função pública e à utilização do contrato individual de trabalho na Administração (tal como configurado pelo direito privado), para além dos constantes do artigos 1.º e 2.º da LGTFP e que são necessários por causa de enquadramento institucional do empregador público, sendo que daqui resultaria, também, uma exigência de que a apreciação de todas as questões referentes às relações de emprego público em sentido amplo devessem ser da competência da jurisdição administrativa.
Na terceira solução teríamos transferência de todo o Direito Laboral Administrativo para a jurisdição dos tribunais civis ou tribunais de trabalho, numa lógica em que se realça a natureza laboral dos contratos aqui em causa e em que se faz prevalecer o critério da similitude material das situações contratuais. Esta é a solução que vigora no Direito Italiano onde, por via das sucessivas reformas do emprego público (particularmente a de 1993, onde relativamente a esta matéria se deve destacar o artigo 68.º do Decreto Legislativo n.º 29, de 3 de Fevereiro de 1993), se verificou a unificação contenciosa de todo o Direito Laboral Administrativo que ficou sujeito a jurisdição comum (dos tribunais de trabalho). Em Portugal esta era a posição consagrada no artigo 12.º da LGTFP (até ao penúltimo anteprojecto da Lei) e é a posição de PALMA RAMALHO105. Esta solução é defendida com base em três grandes argumentos. Em primeiro lugar, como assinala PALMA RAMALHO, esta é uma solução que assume formalmente a laboralização do regime de Emprego Público, sendo uma solução mais equilibrada que procura consagrar uma similitude jurisdicional do Direito Laboral Administrativo com o Direito laboral como para responder ao recente quadro evolutivo que trouxe uma similitude da regulação material destas duas realidades. Em segundo lugar e decorrendo do segundo argumento, entende a Sr.ª Professora que os Tribunais de trabalho são mais aptos em termos técnicos para apreciar estes litígios (ainda para mais num contexto de similitude dos regimes materiais). Por fim e em terceiro lugar, tal como na exposição de motivos anexada ao primeiro anteprojecto da LGTFP, esta solução previne problemas de determinação e de conflito sobre a jurisdição competente (existentes no quadro Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro).
Cabe-nos, agora, tomar posição. Em nosso entender mais importante que tomar uma decisão sobre qual a melhor solução, é antes iniciar o debate sobre o tema, já que o estado actual da discussão do tema na doutrina portuguesa (como deixámos claro) não facilita a tomada de uma decisão e, muito menos, assegura a maturidade necessária para uma mudança da solução actualmente em vigor. Deste modo, antes de expressarmos a nossa posição, gostaríamos de deixar o nosso modestíssimo contributo para este debate expondo 6 notas reflexivas sobre este assunto e o debate que se deve desenvolver. Em primeiro lugar é de notar que, embora alguma doutrina avente a possibilidade de haver uma interpretação extensiva do artigo 12.º LGTFP e do artigo 4.º/4 b) ETAF106 e alguma Jurisprudência107 tenha aberto as portas a uma interpretação ampla do artigo 4.º/4 b) ETAF num sentido que entende que a 1ª parte do preceito fica esvaziada de sentido já que da conjugação do ETAF com a LGTFP resulta que a jurisdição administrativa é competente para dirimir litígios emergentes de todas as relações jurídicas de emprego público (o que incluiria as situações de vínculo de emprego público, mas também aqueles que resultam de contratos de prestações de serviço ou contratos individuais de trabalho não integrados no vínculo de emprego público porque aí o mais relevante era a natureza pública do empregador) e de, embora para já ninguém o ter defendido, haver a hipótese de haver uma interpretação restritiva que implante por via interpretativa a terceira solução108, não nos parece que no quadro legal actual possa haver uma solução diferente (em termos práticos) da que está expressamente consagrada no artigo 4.º/4 b) (a 1ª solução) já que, seguindo TEIXEIRA DE SOUSA109, o elemento literal da interpretação (a chamada letra da lei) é o ponto de partida e o ponto de chegada de qualquer interpretação e, neste caso, o elemento literal do artigo 4.º/4 b) do ETAF e do artigo12.º LGTFP é claro ao determinar expressamente a existência de uma solução dual e, naturalmente, qualquer interpretação tem de ter a mínima correspondência com a letra da lei110, que é algo que em relação a estas duas possibilidades de interpretação não acontece, pelo que, embora sejam tentativas que demonstram um certo esforço e criatividade, elas não são aplicáveis (em termos práticos) face ao elemento literal (que é claro e sem margem para grandes dúvidas, como reconhecem aliás os críticos da 1ª solução111 que sublinham que a alteração da actual solução só se pode dar por via de alteração da lei). Em segundo lugar, parece-nos que o debate em torno destas três soluções é enformado e condicionado pelo debate em torno da natureza do vínculo de emprego público, das suas modalidades e dos restantes contratos de trabalho na administração pública (regulados pelo regime laboral comum) e neste ponto há que deixar claras duas notas: Por um lado, só faz sentido a defesa da 3ª solução para aqueles que, a todo o custo (muitas vezes partindo de uma subversão do Princípio da igualdade), procuram uma fuga para o direito privado, uma fuga às vinculações jurídico-públicas e uma privatização (material e formal) total do emprego público, pela nossa parte, como deixámos claro ao longo deste trabalho, entendemos que pela natureza do emprego público todo este processo de reforma do emprego público deve ser encarado como trazendo a criação de um novo paradigma de vinculação jurídico-pública (que conjuga flexibilidade com persecução do interesse público) que captura as soluções próprias do direito privado para o direito público, trazendo uma aparente privatização das soluções, mas não uma privatização material ou formal já que ainda que haja uma inquestionável fuga para o direito privado, não há (nem poderia haver) uma fuga “às vinculações jurídico-públicas, nem à prossecução dos fins próprios da função administrativa”, daí que, embora alguma Doutrina assuma como ponto de partida (nesta discussão) uma pretensa Unidade entre Direito Laboral Comum e Direito Laboral administrativo, a verdade é que continua a estar aqui em causa a aplicação de Direito Administrativo (distinto do Direito Laboral Comum), pelo que essa Unidade (mesmo que consagrada em Lei) será sempre uma “unidade Fictícia”112; e, por outro lado, embora certa Doutrina queira “desadministrativizar” à força o vínculo de emprego público e as suas modalidades (bem como os contrato de trabalho regulados pelo direito laboral comum) cunhando-lhe uniformemente e acriticamente (sem atender a um conjunto de certos factores e especificidades) uma natureza contratual (pró-privada) híbrida ou especial, a verdade é que, independentemente das sub-qualificações e especificidades de cada uma das figuras, existe aqui um traço comum que é o facto de todas estas figuras (umas com natureza contratual, outras não) serem relações jurídicas administrativas, o que portanto, na lógica do artigo 212.º/3 da CRP, faz com que o litígios dali emergentes devam ser dirimidos nos tribunais administrativos e com que, em nosso entender, a 3ª solução seja de rejeitar já que sobre ela pairará sempre uma indisfarçável sombra de inconstitucionalidade, porque, embora possam haver desvios (desde que pontuais) “para mais e para menos”113 do critério constitucional da relação jurídica administrativa, a verdade é que a 3ª solução traria um esvaziar completo deste critério, já que seria desproporcionada em termos quantitativos, injustificada (já que não nos parece que hajam “outros interesses ou valores constitucionalmente atendíveis”114 que justifiquem esta fuga para a jurisdição comum) e descaracterizaria a jurisdição administrativa como jurisdição própria das relações jurídicas administrativas e fiscais. Em terceiro lugar, devemos assinalar, seguindo o entendimento de alguma jurisprudência115, que apesar de nas relações de emprego público haver, por vezes, uma aplicação miscigenada do direito público e do direito privado que implica a análise de certos aspectos de natureza privada (que à partida poderiam caber à jurisdição comum), isso não impede que os litígios daí emergentes sejam totalmente apreciados pela jurisdição administrativa, já que as relações de emprego público são sempre relações jurídicas administrativas, pelo que deste vértice será preferível a 2ª solução (ou pelo menos a sua defesa). Em quarto lugar, importa notar, seguindo VIEIRA DE ANDRADE116, que aqui não está em causa “uma zona aberta à total liberdade do legislador” pelo que são de rejeitar alguns argumentos de natureza prática que, ora entendem que a Jurisdição Administrativa não está preparada em termos técnicos para apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas de emprego público (que é algo invocado pelos defensores da 1ª e da 3ª soluções) porque estas convocariam a necessidade de existirem ritos próprios para os quais os tribunais administrativos não estão preparados, ora entendem que só a Jurisdição Administrativa asseguraria a imparcialidade na apreciação do litígio (que é aquele que, no campo da 2ª solução, é invocado pela CGTP), já que estes são argumentos que assumem uma visão passadista do direito (e do direito administrativo em particular) e uma visão redutora dos tribunais administrativos, que têm em si subjacente uma lógica preconceituosa (em relação à plenitude da jurisdição administrativa e à independência dos juízes) que é de rejeitar em toda a linha já que ofusca as reais questões que aqui importa discutir. Em quinto lugar, importa sublinhar que, como assinala a doutrina defensora da 2ª solução, a solução actualmente em vigor traz uma lógica paradoxal, contraditória e contrária à ideia de simplicidade que deve existir na repartição de jurisdições117 quanto aos Contratos de Trabalho que não sejam vínculo de emprego público mas que estejam sujeitos a certas exigências de Direito Administrativo (como por exemplo, a existência numa fase pré-contratual de um procedimento administrativo), fazendo com que não haja uniformidade na apreciação das situações concretas, abrindo porta a contradições e pondo em causa a tutela jurisdicional efectiva dos autores que para verem reconhecidos os seus direitos e pretensões têm de passar uma verdadeira “via crucis”118 com elevados e previsíveis custos monetários, com uma demora (ainda maior da tutela), com elevados níveis de incerteza e com uma lógica de burocracia excessiva. Em sexto e último lugar devemos sublinhar que somos sensíveis à visão de alguma doutrina119 que vem criticando o facto de, no quadro actual, a jurisdição administrativa não ter, por exemplo, nem uma tramitação própria para os litígios emergentes do vínculo de emprego público (que atenda às especificidades desta figura) e a falta de formas processuais adequadas, o que traz o risco de uma má aplicação da justiça neste importante sector e pode constituir um factor de desigualdade entre os trabalhadores da administração pública e os trabalhadores privados, pelo que, embora defendamos (como já se vem depreendendo da posição que vamos expressando) em termos gerais a 2ª solução, a verdade é que, para além de não haver, como anteriormente referimos, a maturação suficiente no plano da discussão doutrinária, também não existe a maturação em termos práticos. Deste modo, entendemos que é necessário que, nesta matéria, se discutam e criem soluções e mecanismos processuais adequados às especificidades dos litígios aqui em causa, de modo a assegurar uma especialização dentro da especialização. Essas soluções podem ser mais básicas, como por exemplo pela criação de uma tramitação própria para estes litígios (que é algo proposto por VERA ANTUNES 120) ou como o incentivo à utilização de meios alternativos de resolução de litígios nos litígios ligados à função pública (que é algo que, sendo amplamente permitido pela LGTFP, consta, também, do Programa do XXI Governo Constitucional121, onde surgem um conjunto de medidas que asseguram uma maior utilização destes meios, o que trará, naturalmente, uma certa operacionalização das soluções que constam da LGTFP) ou por soluções mais profundas, que podem passar, por exemplo ou pela criação de tribunais especializados no domínio da Função Pública que, como assinala JORGE MIRANDA122, é algo que não é vedado pela Constituição, mas que tem necessariamente de ser bem mais discutido já que para esta solução é fundamental a ponderação do legislador ou, como propõe MIGUEL RAIMUNDO123, pela criação, em nome da tutela jurisdicional efectiva e de uma lógica de especialização, de Tribunais compostos por juízes de diferentes proveniências e especializações.