Resumo: As novas Directivas comunitárias em matéria de contratação pública obrigarão o legislador Português a proceder à revisão do Código dos Contratos Públicos.
No texto apela-se a que essa transposição, que traduz uma decisão política, não seja feita de forma acrítica mas sim de forma participada e ponderada,
aproveitando-se para alterar os aspectos do Código que careçam de aperfeiçoamento mas sem cair na tentação (e no erro) de proceder à elaboração de um novo
Código.
Palavras chave: Directivas comunitárias; transposição; decisão política; contratação pública; regras de legística.
Abstract: The Portuguese Government will revise the Public Contracts Code in accordance with the new European Directives on public procurement. The author claims that the Code’s revision implies a political decision that shall be taken after an open and participated debate has taken place. The author further argues that the legal framework, dated 2008, may now be subject to any amendments found necessary, other than those strictly required by the Directives. It is however sustained that there is no need for the approval of a new Public Contracts Code.
Keywords: European Directives; transposition; political decision; public procurement; lawmaking rules.
1. Na sequência da aprovação e entrada em vigor das mais recentes Directivas europeias em matéria de contratação pública 2, e tendo em conta o prazo estabelecido para a respectiva transposição pelos Estados-membros, deverá o legislador Português, até 18 de Abril de 20163, aprovar as medidas legislativas 4 destinadas a incorporar no nosso ordenamento jurídico interno o novo regime comunitário.
O propósito deste texto é justamente o de tecer algumas breves considerações sobre esse processo de transposição.
2. A título de nota prévia, começa por se recordar que a nossa História mostra ser necessário dedicar uma redobrada atenção à transposição de Directivas comunitárias, já que, neste particular, o desempenho habitual do legislador Português tem sido longe de exemplar, tanto no que se refere ao cumprimento dos prazos5 como no que respeita à adequação do conteúdo do acto legislativo finalmente aprovado6.
Ora, se há campo em que se justifica cumprir (e cumprir bem) os prazos de transposição das Directivas, rompendo com a tendência tantas vezes verificada entre nós, esse campo é precisamente o da contratação pública, cujos impacto prático e peso económico dispensam ulteriores demonstrações da afirmação acabada de proferir.
3. Verdade seja dita que o Estado Português já se apercebeu da necessidade de transpôr as novas Directivas para o ordenamento interno e, nesse sentido, o Governo já nomeou inclusivamente uma comissão para proceder à elaboração do anteprojecto do correspondente diploma de transposição 7.
Esse facto, aliado à circunstância de o nosso quadro legal em matéria de contratação pública já se aproximar bastante do regime consagrado nas Directivas que agora devem ser transpostas8, permite concluir que, desta vez, não se vislumbram motivos para recear que o Estado Português incumpra a sua obrigação de transpor as Directivas comunitárias dentro do prazo estabelecido para o efeito.
4. Nesta linha, inexistindo, para já, indícios de que o cumprimento do prazo de transposição possa estar em risco (apesar de ser preciso dizer que a nomeação da comissão foi, para dizer o mínimo, tardia), a nossa preocupação centra-se essencialmente sobre o modo como as Directivas serão transpostas.
No entanto, tendo presente a conveniência de, no processo de transposição de Directivas, diferenciar os planos da decisão política e o do trabalho técnico-administrativo9, cabe ressalvar desde já que será sobre o primeiro plano que nos debruçaremos nas linhas subsequentes. Ou seja, mais do que apontar concretos aspectos de regime que, do ponto de vista jurídico, se torna necessário alterar para compatibilizar a legislação Portuguesa com o novo quadro comunitário, importa-nos sobretudo indagar qual deverá ser a orientação política, a filosofia global do diploma de transposição.
É que, ao contrário de tantas vezes sucede, inclusivamente ao mais alto nível e no âmbito da revisão dos diplomas mais estruturantes do nosso ordenamento jurídico10, primeiro há que definir quais os objectivos a atingir e só depois encontrar a linguagem técnico-jurídica mais adequada para verter essas opções políticas num articulado legal.
5. Assim sendo, se – sem prejuízo das obrigações decorrentes dos Tratados e do entendimento crescentemente “ampliativo” do Tribunal de Justiça relativamente às Directivas, a ponto de lhes atribuir determinados efeitos mesmo antes de expirado o respectivo prazo de transposição 11 – a transposição das Directivas constitui, em primeira linha, uma opção política, é a este nível que deve primacialmente colocar-se a questão de como levar a cabo essa tarefa.
A este respeito, tanto quanto sabemos, o Governo não terá transmitido antecipadamente quaisquer orientações à comissão incumbida de elaborar o anteprojecto de diploma de transposição (pelo menos, tais orientações, a existirem, não constam do Despacho de nomeação), o que indicia que, neste momento, o poder político ainda não se terá vinculado a qualquer opção pré-definida e, porventura, aguardará pelo resultado do trabalho da comissão para, só então, em face de um projeto de articulado, tomar a opção de fundo quanto ao alcance das alterações a consagrar12 .
Razão acrescida para que agora se discuta o rumo que, a final, se pretende seguir.
6. Como se depreende já do que acima ficou dito, o nosso apelo à discussão parte de duas premissas distintas, mas complementares.
A primeira é a de que, quando transpõe uma Directiva comunitária para o seu ordenamento, o Estado Português, quer queira e se aperceba disso ou não, está a exercer a função política: apesar de estar, naturalmente, a cumprir uma obrigação no que faz, o modo como escolhe fazê-lo não é inócuo e corporiza uma determinada opção valorativa. De resto, isto mesmo é evidenciado pelas diferenças existentes entre os ordenamentos dos vários Estados-membros, verificando-se que, devendo todos transpor as mesmas Directivas, cada um procede a essa transposição de forma distinta. O que, aliás, constitui um traço específico da Directiva, ao traçar os fins que os Estados devem atingir, mas deixando-lhes plena liberdade para definirem os meios pelos quais tais fins serão prosseguidos (ao contrário do que sucede, paradigmaticamente, com o regulamento) 13.
A segunda premissa, decorrente da primeira, é a de que, traduzindo o resultado da transposição (não o facto da transposição em si mesmo) uma escolha e, mais do que isso, uma escolha política (que não meramente técnica), tal deverá ser claramente assumido e, sobretudo, deverá a decisão final, desejavelmente, ser tomada na sequência de um debate participado e de uma ponderação adequada das vantagens e inconvenientes de cada uma das opções possíveis a adoptar14.
7. Acresce que, neste caso, estamos perante uma escolha política originada por um motivo, também ele, político. Ou seja, não pode olhar-se as Directivas comunitárias e pensar-se que se está perante um mero facto (em si mesmo, objectivamente neutro), mas sim perante uma determinada opção política já tomada, com um certo sentido, pelas instâncias europeias competentes, opção essa à qual é pedido aos legisladores nacionais que respondam (e não apenas que adiram). Neste sentido, o legislador não está perante uma situação de facto que reclame uma resposta política, está, sim, perante um dado político – e é importante não o perder de vista.
Desde logo, a próprio fomento do recurso ao contrato como instrumento normal de actuação administrativa enquadra-se numa lógica de “nova gestão pública”, que, entre outras consequências, conduz à “ substituição do ato de autoridade unilateral da Administração pela negociação com os cocontratantes e o abandono da autotela declarativa e executiva da Administração ”15.
Por outro lado, também as regras comunitárias aplicáveis aos procedimentos de formação de contratos públicos têm subjacentes uma determinada mundividência, uma concepção (ideo)lógica do que deve ser um mercado único europeu, com livre circulação de bens e serviços.
Assim, e mesmo sem discutir se igualmente neste campo o pensamento jurídico se encontra ou não modelado de acordo com uma visão neoliberal 16, importa compreender quais os fins efectivamente subjacentes às Directivas europeias em matéria de contratação pública17 e aferir, também, se e em que medida tais objectivos comunitariamente fixados são ou não consentâneos com as políticas públicas que cada Estado, através dos órgãos democraticamente legitimados e no exercício da sua margem de conformação política, considera como sendo as mais adequadas. Até porque, numa União com dezenas de Estados, com características díspares e graus de desenvolvimento tão heterogéneos, pode bem suceder que a adopção das mesmas medidas em cada um dos países apenas contribua para perpetuar e agravar os desníveis já existentes entre si18 – caso em que as Directivas, continuando formalmente a constituir instrumentos de aproximação e uniformização legislativa, se assumiriam, porém, na prática, como meios de diferenciação económica dos vários Estados.
Em suma, por mais avançado que esteja o processo de integração europeia, o legislador europeu ainda não ocupa (totalmente...) o lugar do legislador nacional; e, por mais detalhadas e extensas que sejam19, as Directivas comunitárias não esgotam o espaço de ponderações políticas a fazer internamente, no seio de cada Estado20.
8. Dito isto, pela nossa parte, entendemos que, ao fim de quase uma década de vigência, esta seria uma boa altura para repensar algumas opções do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) 21 , essencialmente em função do que tem sido o labor da doutrina e, sobretudo, em função dos problemas práticos que algumas das suas disposições têm suscitado, quer a entidades adjudicantes quer aos candidatos/concorrentes, muitas delas (mas nem todas...) reflectidas na (já abundante) jurisprudência que foi sendo produzida pelos nossos Tribunais Administrativos quando chamados a pronunciar-se sobre os litígios relacionados com normas do CCP ou legislação conexa22.
Neste contexto, já que, a pretexto da transposição das Directivas, terá necessariamente de se proceder a uma revisão do CCP, entendemos que seria um erro o Estado Português, tanto limitar-se a traduzir e importar acriticamente tudo quanto consta das Directivas, como – mesmo assumindo que o legislador saberia desbravar com lucidez o caminho por entre a complexidade e a ambiguidade dos normativos comunitários e que a transposição seria rigorosa em termos de técnica jurídica – ficar por aí e apenas alterar o que estritamente for necessário para adaptar o nosso quadro legal às alterações que aquelas impõem23. Ou, para utilizar a célebre expressão de Maria João Estorninho relativamente à transposição das Directivas de 2004, não deverá o legislador contentar-se aqui com uma solução minimalista 24. Pelo contrário, tal como Rui Medeiros, pensamos que a transposição das Directivas de 2014 constitui um excelente pretexto para rever o nosso regime legal25.
Não obstante, parece-nos que cair no extremo oposto – numa abordagem maximalista, de refazer tudo “de alto a baixo” –, também não seria a opção mais adequada. É nossa opinião – e baseamo-nos na nossa experiência profissional, com o que tem de empírico e falível – que, após ter, num primeiro contacto, suscitado alguma desconfiança na comunidade jurídica, o CCP se encontra já sedimentado no dia-a-dia dos operadores que lidam com matérias de contratação pública, pelo que uma revisão ou revogação totais seriam, hoje, contraproducentes. Por muito atractivo que seja o apelo a um Código menos regulamentador e mais flexível26, consideramos que, nesta fase, por melhor que fosse o “novo Código” a ser aprovado pelo legislador, o facto de se voltar a mudar radicalmente de regime representaria um retrocesso para os operadores, obrigando-os a uma nova e difícil reaprendizagem27, inutilizando de permeio todo o “edifício” dogmático entretanto já construído pela doutrina e pela jurisprudência em torno do CCP28.
Acresce que, nestes sete anos de vigência, o CCP já foi alterado por diversas vezes29, à média de uma alteração por ano – já para não referir que, paralelamente, o legislador foi criando regimes especiais de contratação pública, seja em diplomas autónomos 30, seja (o que é mais pernicioso ainda) em normas avulsas inseridas nos sucessivos Decretos-Lei de execução orçamental aprovados em cada ano31. Por conseguinte, afigura-se-nos que só por excessivo optimismo poderia considerar-se que um novo Código seria, enfim, a ansiada panaceia para todos os males da nossa contratação pública.
Concluindo: proceda-se à transposição das Directivas e altere-se, além disso, o que a prática, a doutrina e a jurisprudência têm mostrado carecer de clarificação ou aperfeiçoamento; mas mantenha-se a base essencial com que os operadores já estão familiarizados e tenha-se presente que, num Código – em especial, tratando-se, como se trata, de um diploma nuclear para um sector fundamental da actividade económica, como é a da contratação pública –, a estabilidade é um valor (pelo menos) tão importante como a maleabilidade32, pois que, em cada alteração legislativa, nem sempre o que se ganha em justiça (por vezes, aparente...) compensa o que inevitavelmente se perde em segurança33. Ou, em síntese, e recuperando aqui, adaptadamente, uma conhecida expressão 34: mude-se o Código, sim, mas não se mude de Código. Nem as Directivas o exigem, nem quaisquer outras circunstâncias parecem, pelo menos neste momento, justificá-lo.
Tem agora o legislador a palavra.