Palavras chave: Tribunais administrativos; Jurisdição administrativa; Juiz singular; Decisão em prazo razoável; Imparcialidade.
Sumário: 0. Introdução. 1. Âmbito material da jurisdição administrativa. 1.1. A clarificação e o aprofundamento do âmbito da jurisdição administrativa. 1.2. Análise das alterações à redação do artigo 4.º do ETAF. 1.3. A delimitação negativa do âmbito da jurisdição administrativa. 2. Questões relativas à competência em razão da hierarquia. 3. O funcionamento dos tribunais administrativos de círculo com juiz singular. 3.1. A decisão dos processos por juiz singular como instrumento de promoção da duração razoável do processo. 3.2. A reclamação para a conferência de decisão proferida por um único juiz sendo devido o julgamento por formação de três juízes. 4. A constituição de equipas extraordinárias de juízes nos tribunais tributários. 5. Alterações com relevo no plano da imparcialidade no exercício da função jurisdicional. 6. Conclusões.
Abstract: The intended changes to administrative judiciary regulation is based in the idea that administrative courts should be given the power to adjudicate all disputes which, by their nature, are true juridical administrative relations. It also focus on increasing the use of a single judge instead of a panel. We pay attention to these two main changes. At first, we try to make an overall assessment and then an individual check of some of the changes in administrative judiciary regulation (scope of the jurisdiction). Secondly, we highlight the single judge rule in the context of the right to a trial within a reasonable time. We also analyze the gain to ensure judicial impartiality that could come from changes in the way Administrative Superior Court works and from the evaluation of judges to achieve higher positions.
Keywords: Administrative courts; Administrative judiciary regulation; Single judge; Right to a trial within a reasonable time; Judicial impartiality.
0. Introdução
A exposição de motivos do projeto de proposta de lei de revisão do CPTA e do ETAF1, no que se refere às alterações introduzidas neste, destaca como “a inovação mais significativa” a relativa à “ definição do âmbito da jurisdição administrativa, mais concretamente, no que diz respeito ao seu artigo 4.º” e à relação deste com o artigo 1.º. O artigo 1.º, n.º 1, do ETAF perde o seu carácter de cláusula geral, ao remeter apenas para os “ litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º”.
Procura-se tornar mais abrangente, clara e, por isso, eficaz a delimitação pelo legislador ordinário da esfera de competências dos tribunais administrativos, por referência ao critério constitucional da “relação jurídica administrativa”2.
Em contraponto, das modificações introduzidas no CPTA sobre arbitragem resulta o alargamento da «concorrência» dos tribunais arbitrais 3.
A exposição de motivos assinala, também, “como muito significativo” a previsão do funcionamento, em regra, dos tribunais administrativos de círculo com juiz singular4.
Há, ainda, outras alterações5. O preâmbulo do projeto de decreto-lei autorizado refere-se a “diversos ajustamentos pontuais na estrutura do Supremo Tribunal Administrativo e no regime dos concursos para tribunais superiores” e “ à redefinição do regime aplicável aos presidentes dos tribunais de primeira instância"6.
Com relevo no plano da imparcialidade no exercício da função jurisdicional, salienta-se: i) a previsão, no que respeita às “formações de julgamento” do STA7, de que é vedado aos “juízes que tenham votado a decisão recorrida” a intervenção no “julgamento no Pleno”8; e ii) a redefinição da ordem dos critérios de ordenação dos candidatos ao provimento das vagas para tribunais superiores, a qual esbate no conjunto, ainda que de forma não significativa, o valor das tarefas ou funções não jurisdicionais9.
O presente texto analisa as principais alterações ao ETAF, enunciadas, que considera de forma sequenciada. Em primeiro lugar, no sentido da aferição do alcance das alterações em geral e de algumas em particular ao âmbito da jurisdição administrativa. Quanto ao funcionamento dos tribunais de primeira instância com juiz singular, procura-se, sobretudo, contextualizá-la à luz do direito a uma decisão em prazo razoável. Em terceiro lugar, cremos que as alterações destacadas no parágrafo que antecedem constituem uma oportunidade para o reforço da imparcialidade nos tribunais administrativos.
Analisam-se ainda questões circunstanciais relativas à garantia do recurso jurisdicional e à constituição de equipas extraordinárias de julgamento nos tribunais tributários para processos acima de certo valor.
1. Âmbito material da jurisdição administrativa
1.1. A clarificação e o aprofundamento do âmbito da jurisdição administrativa
1.1.1. A modificação na “definição do âmbito da jurisdição administrativa” respeita à concentração desta delimitação no artigo 4.º do ETAF 10. Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal julgam os litígios previstos no artigo 4.º do ETAF.
A alteração é explicada com a intenção de clarificação dos “ termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal ” e a intenção de “fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos”11.
O artigo 4.º é significativamente alterado. É nele suprimido o advérbio “nomeadamente”, mas o elenco do n.º 1 contínua a ser um elenco aberto, pois a sua alínea q) convoca, em geral, as “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores" 12. A norma da alínea q) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF assume-se como uma norma residual, omnicompreensiva dos litígios jurídico- -administrativos não enunciados no mesmo n.º 1 do artigo 4.º13.
Uma das questões que se coloca é a de saber qual o efeito da norma da alínea q) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF sobre as disposições legais avulsas que subtraem, atualmente, à jurisdição administrativas litígios relativos a relações jurídicas administrativas, na medida do artigo 4.º e, em particular daquela alínea, resulta uma intenção conformadora do legislador “no sentido de prevalecer sobre normas especiais anteriores”14. O enunciado parece convocar a necessidade da confirmação ou reavaliação de tais disposições 15. É de notar que, em matéria de fixação da justa indemnização devida por expropriação, servidões e restrições de utilidade pública16, o diploma de revisão nada diz, de forma expressa, de igual modo, sobre as normas do Código das Expropriações que derroga ou modifica17, embora aqui a intenção derrogatória seja mais precisa.
No entanto, as virtualidades da alínea q) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF são temporalmente limitadas, na medida em que venham a ser introduzidas pelo legislador novas situações de desvio da jurisdição administrativa, que sejam constitucionalmente aceitáveis 18 19. A concretização de uma reserva de jurisdição administrativa absoluta não tem igualmente lugar na generalidade dos países europeus20.
As alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (projeto) parecem ter subjacente, em geral, a ideia de relação jurídica administrativa. Por um lado, porque é a própria alínea q) do n.º 1 do artigo 4.º que se refere às relações jurídicas administrativas das alíneas anteriores. Por outro lado, porque nestas é, ou enfatizada a natureza do regime jurídico aplicável (jurídico-administrativo e, nalguns casos, jurídico-público 21), ou destacado o “exercício de poderes administrativos de autoridade”, ou as formas específicas de atuação dos entes públicos ou ainda comportamentos que, ainda que de forma mediata, são expressão do exercício do poder administrativo 22. Os litígios relativos a relações jurídico-privadas nas quais sejam parte uma entidade pública, desprovidas de qualquer modelação jus-administrativista e que não convoquem esta, parecem afastados do âmbito da jurisdição administrativa.
1.1.2. O projeto de revisão recupera para a jurisdição administrativa litígios que estavam subtraídos ao seu âmbito 23. É o caso: i) da fiscalização dos atos administrativos do Presidente do STJ e do Conselho Superior da Magistratura e do seu Presidente24; ii) da “fixação da justa indemnização devida por expropriações, servidões e outras restrições de utilidade pública"; iii) das “ impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas e o mesmo será de dizer, por identidade ou maioria de razão, relativamente às sanções acessórias, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado ”25.
E “ estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime ” e à “ execução de satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração, a qual, na ausência de legislação especial, se rege pelo disposto na lei processual civil ”.
1.1.3. Às treze alíneas atuais sucedem-se dezassete alíneas, o que se deve ao aditamento ao respetivo elenco de novas situações. É igualmente de registar a concentração numa única alínea da competência em matéria de contratos26; algumas alterações de redação; e a supressão (pela sua evidência) da alínea n) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, que recorda inscrever-se no âmbito da jurisdição administrativa a “execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal”27.
Vejamos mais detidamente estas alterações.
1.2. Análise das alterações à redação do artigo 4.º do ETAF
1.2.1. A nova redação da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF precisa que a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos enunciada sem mais na versão atual da disposição é a que se coloca no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais. Os juízes administrativos são “juízes da constitucionalidade” das formas de atuação administrativa28 29 e garantes da tutela dos direitos das pessoas naquele que é domínio próprio da jurisdição administrativa. Com efeito, essa tutela é igualmente assegurada nos domínios de outras ordens de jurisdição, na medida em que o litígio em concreto o convoque e na medida em que “todas as jurisdições estão imediatamente vinculadas pelos direitos fundamentais” 30.
1.2.2. A disposição da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.ºdo ETAF deixa de incluir a referência à “ verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo em que e fundou a respetiva celebração ”, mantendo a previsão inicial da “fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por na redação atualórgãos da Administração Pública e na anterior “por pessoas coletivas de direito público” , ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal". O trecho suprimido verdadeiramente não se autonomiza das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º, relativas à validade de contratos, designadamente, quando o questionamento desta decorre de vícios no seu processo formativo 31, passando a inscrever-se no âmbito do enunciado abrangente da nova redação da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º.
As normas e atos jurídicos substancial, procedimental e organicamente não regulados pelo Direito Administrativo não se inscrevem na jurisdição administrativa. Daí a referência a normas e demais atos jurídicos emanados (por órgãos da Administração Pública) ao abrigo de disposições de direito administrativo. As deliberações dos órgãos de pessoas coletivas públicas com forma jurídico-privada parecem, assim, estar incluídas no âmbito da jurisdição administrativa apenas na medida em que convoquem uma disciplina substantiva jus-administrativa32.
1.2.3. No âmbito da jurisdição administrativa inclui-se a fiscalização da legalidade de atos administrativos (incluindo normativos) praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública (alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF). A disposição expressa aquilo que decorre do facto de os atos praticados no exercício da função administrativa – mesmo com carácter ancilar ao funcionamento de órgãos do poder público não integrados na Administração Pública – serem atos administrativos33.
1.2.4. A disposição da alínea d) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF específica a possibilidade de fiscalização da legalidade de atuações materialmente administrativas de sujeitos que não sejam formalmente administrativos e, portanto, desde logo de entes privados, referindo-se a atos e normas emitidos “ no exercício de poderes administrativos de autoridade”. O enunciado em parte sobrepõe-se ao da alínea anterior, mas vai além dele na respetiva abrangência subjetiva, embora não do ponto de vista objetivo, porque a alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF não considera apenas manifestações de “exercício de poderes administrativos de autoridade”.
1.2.5. A delimitação da competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos, que resulta das alíneas b), 2.ª parte, e) e f) do ETAF (versão atual), é concentrada numa única norma, como referido, a da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. A nova disposição refere-se à: i) “ validade de atos pré-contratuais”; iii) à “interpretação, validade e execução de contratos administrativos”; iv) à “ interpretação, validade e execução…de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes "34. A primeira impressão é a de que – salvo os contratos celebrados nos termos do regime da contratação pública –, os contratos de direito privado celebrados pelas entidades públicas ficam, em geral, fora da jurisdição administrativa 35; embora quando esteja em causa a sua invalidade por força de invalidade no procedimento formativo, a mesma seja de apreciar nos tribunais administrativos, dados os fundamentos do pedido, que não podem ser dissociados da aplicação de princípios de Direito Administrativo36.
Em segundo lugar, constata-se que o legislador retoma, na lei do processo, a menção à figura do contrato administrativo37. Este é recortado em termos amplos pelo Código dos Contratos Públicos 38, que capturou para esta qualificação contratos que não seriam, pela identidade da atividade contratada com um mesmo tipo de contrato celebrado entre privados e mesmo pelo regime aplicável, prima facie, como tal qualificados. Os critérios aí previstos são considerados fora do contexto daquele Código. Assim, por exemplo, em sede de Tribunal de Conflitos, tem sido decidido que os litígios relativos à aplicação do regime da renda apoiada a um contrato de arrendamento celebrado entre um município e um particular se inscrevem no âmbito da jurisdição administrativa, dada a especificidade daquele regime e a função pública que lhe subjaz, e, portanto, o facto de não ser um simples “contrato de arrendamento de direito privado”39.
1.2.6. Os tribunais administrativos são competentes para dirimir litígios que convocam o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas40 e, portanto, em que está em causa o exercício da função político-legislativa, da função jurisdicional e da função administrativa41, mas também os litígios a que tal regime não seja aplicável. O ETAF refere-se à “responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional”42 (à exceção, por razões atinentes à separação e independência de jurisdições43, da responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais de outras ordens de jurisdição e correspondentes ações de regresso) e, tratando-se da “responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos”44, considera as situações em “seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público” 45. Quanto à “ responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso ”, o aditamento do termo trabalhadores parece convocar a inclusão na jurisdição administrativa das situações de responsabilidades dos trabalhadores de entidades públicas com relações de emprego abrangidas pelo Código de Trabalho, o que só será o caso quando se lhes aplique o regime da responsabilidade civil extracontratual pública46 47 .
A alteração aos enunciados atuais traduz-se, respetivamente:
a) Na supressão do trecho “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a” (responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público…), que poderia sugerir, embora ilogicamente, que a delimitação da competência se aferia pela plausibilidade da procedência da invocação do regime de responsabilidade;
b) Na expressa menção à responsabilidade pelo exercício da função política, o que é consentâneo com a previsão, no regime de responsabilidade civil do Estado citado, da “responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa” (itálico nosso), com o paralelismo de liberdade conformativa de ambas as funções e com o princípio geral de responsabilidade jurídica dos poderes públicos pelas suas ações ou omissões funcionais48;
c) No acrescento referido do termo “trabalhadores” ao elenco de designações abstratamente possíveis (que usa, mesmo que abandonadas pelo legislação do emprego público49) para os que, a qualquer título, exerçam funções ou prestem serviço a uma entidade pública;
d) E na substituição da expressão “sujeitos privados” por “demais sujeitos”, o que parece querer, por um lado, afastar conflitos de jurisdição associados à determinação da qualificação do sujeito ou entidade demandada e, por outro lado, garantir a inclusão de toda a “atividade pública lesiva”, designadamente dos órgãos do Estado não integrados na Administração Pública, de acordo com as exigências do Direito europeu 50. Neste âmbito, destaca-se a Sentencia do Tribunal Supremo espanhol de 27.11.2009, RCA 603/2007, relativa à “responsabilidad patrimonial del Estado por anormal funcionamiento de la Oficina del Defensor del Pueblo”, que afirmou a responsabilidade deste, para além da previsão legal de que não pode ser julgado ou responsabilizado pela sua atuação no exercício do cargo 51;
e) Em sede de responsabilidade, é de notar a inclusão na jurisdição administrativa, tal como decorria já da jurisprudência, da “ competência para dirimir os litígios nos quais devem ser conjuntamente demandadas entidades públicas e privadas entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidad e”52.
Com efeito, evita-se a “duplicação de ações judiciais” e garante-se a sua plena intervenção numa causa na qual têm decisivo interesse 53.
1.2.7. As "situações constituídas em via de facto” pela Administração54 55 são uma expressão intrusiva, ademais sem título jurídico, do agir administrativo, que contendem com a tutela dos direitos de outros sujeitos56. Se a intervenção dos tribunais administrativos já poderia ser obtida no âmbito geral da “ tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”, o certo é que, tradicionalmente, a proteção jurisdicional contra tais situações estava associada à ideia dos tribunais judiciais como guardiões da propriedade57 e da liberdade.
A este título é expressiva a formulação do acórdão do tribunal francês de conflitos de 27 mars 1952, Dame de la Murette, n° 0133958:
“… il appartient à l'autorité judiciaire, gardienne de la liberté individuelle, de statuer sur les conséquences de tous ordres des atteintes arbitraires à cette liberté, celles-ci ayant, par elles-mêmes, le caractère d'une voie de fait ".
A alteração traduz, pois, a assunção desta função de proteção (jurisdicional) também pelos tribunais administrativos.
1.2.8. A previsão da alínea j) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (projeto) vai de encontro em geral ao disposto no artigo 37.º, n.º 2, alínea g), do CPTA, que identifica como pretensão dedutível através de ação judicial administrativa a “ condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público”, assim como por “afetação do conteúdo essencial de direitos ”.
A condenação ao pagamento de indemnização “devida por expropriações, servidões e outras restrições de utilidade pública” passa igualmente para a jurisdição administrativa59, colocando-se no âmbito desta um aspeto essencial da aplicação do Código das Expropriações, depois de na reforma de 2002/203 terem sido contempladas as questões relativas ao exercício do direito de reversão 60.
1.2.9. No que se refere aos litígios relativos a “relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo e fiscal”61, destaca-se: i) a supressão da referência “ao âmbito dos interesses que lhes cumpre defender”; e ii) a precisão ou circunscrição da competência dos tribunais administrativos às relações interinstitucionais e interorgânicas disciplinadas “por disposições de direito administrativo e fiscal”.
Trata-se de alterações que vão de encontro a observações que vinham sendo feitas na doutrina e, no caso especificamente do trecho suprimido, trata-se de separar o que releva em sede de delimitação do âmbito da jurisdição da questão da legitimidade6263.
1.2.10. O enunciado da alínea m) do n.º 1 do artigo 4.º do projeto em causa é o mesmo da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º atual, salvo na parte em que este dispõe “e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional”. Por um lado, parece ser desnecessário o esclarecimento de que as violações dos bens jurídicos que refere enquanto constituam ou constituam também ilícito penal não são apreciadas enquanto tais pelos tribunais administrativos. Por outro lado, parte das contraordenações passam a estar contempladas na alínea n). A disposição refere-se à prevenção, cessação e reparação de violações, por entidades públicas, dos “valores e bens constitucionalmente protegidos” da saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado64. Há uma dimensão pública da proteção destes que avulta65 ou que está amiúde presente mesmo quando a afetação da sua disciplina jurídica ou a intervenção pública regulatória se projeta na esfera das relações jurídicas entre privadas ou coincide com interesses individuais de fruição daqueles 66. A violação pelas entidades públicas dos bens referidos pode ter lugar através de atos autorizativos jurídico-públicos67, da omissão de intervenção (v.g., pela prática de atos jurídicos adequados ou pela realização operações de fiscalização), da projetada prática de atos lesivos68 ou de atuações diretamente ofensivas de normas de proteção respetivas69.
A norma refere-se às violações “cometidas pelas entidades públicas”, pelo que não contemplará as situações a que se refere o artigo 37.º, n.º 3, do CPTA, em que um particular intenta uma ação contra outro particular por violação deveres jurídico-administrativos, cujo enquadramento será, então, de fazer na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF70.
1.2.11. Passam a estar incluídas no âmbito da jurisdição administrativa as “ impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito dos ilícitos de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado ”71.
Desta feita, continuam fora do âmbito da jurisdição administrativa a generalidade dos litígios relativos a processos de contraordenação, desde logo aqueles da responsabilidade das entidades administrativas independentes com funções de regulação e supervisão, para os quais existe o tribunal da concorrência, regulação e supervisão (de competência especializada e de competência territorial alargada72), ao qual compete “ conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contraordenação legalmente suscetíveis de impugnação ” daquelas entidades, assim como das ” decisões da Autoridade da Concorrência proferidas em procedimentos administrativos a que se refere o regime jurídico da concorrência, bem como da decisão ministerial” autorizativa de operação de concentração que faça prevalecer interesses outros sobre a concorrência73 e das demais decisões daquela autoridade que admitam recurso, nos termos previstos no regime jurídico da concorrência 74 75. Os problemas de determinação do tribunal competente não ficam inteiramente resolvidos (salvo quanto à Autoridade da Concorrência), pois nem todas as decisões e atuações daquelas entidades se resumem aos processos de contraordenação76. É de notar, igualmente, que a norma não refere nem as sanções acessórias nem as medidas cautelares. As primeiras, associando-se à aplicação de coimas, estarão igualmente compreendidas no enunciado, que diz menos do que quereria dizer. As segundas não pressupõem um procedimento sancionatório, mas consubstanciam imposições típicas do poder de autoridade pública, cujo controlo jurisdicional se inscreve no âmbito da jurisdição administrativa77.
1.2.12. Atribui-se aos tribunais administrativos a competência para a assegurar a execução do cumprimento de obrigações ou a execução de limitações decorrentes atos administrativos que não possam ser executados coercivamente pela Administração, situações em que as entidades públicas para fazerem valer os seus direitos ou garantir a proteção dos seus interesses tem de recorrer à via judicial78, de que constituem exemplos atuais a obtenção de mandado judicial por parte da Administração para, por exemplo, fazer cumprir obrigações de limpeza de terrenos ou de obter a execução da determinação de retirada de prédio de animais por razões de higiene e saúde pública 79.
Trata-se de ir de encontro à projetada alteração ao regime da execução dos atos administrativos definido no CPA, que passa a assentar no “princípio de que a execução coerciva dos atos administrativos só pode ser realizada pela Administração nos casos expressamente previstos na lei” 80.
Nos termos do CPA, a “execução de obrigações pecuniárias” segue, no entanto, o processo de execução fiscal, tal como regulado “na legislação do processo tributário”81. Segundo Vieira de Andrade, o cometimento aos tribunais tributários da respetiva competência constitui “ um desvio interno às regras de competência, que se compreende por razões de tradição, embora os tribunais administrativos passem a estar em condições de proceder a tal execução, tal como são competentes para a execução de sentenças administrativas contra particulares (artigo 157, n.º 2, do CPTA), incluindo as de condenação em pagamento de quantias, e lhes cabe a execução judicial dos atos administrativos contra particulares, quando não impliquem prestações pecuniárias ”82.
1.3. A delimitação negativa do âmbito da jurisdição administrativa
1.3.1. A delimitação negativa é feita, naquele que passa a ser o n.º 3 do artigo 4.º do ETAF, nos mesmos termos que atualmente e, portanto, com carácter exemplificativo; e, naquele que passa a ser o n.º 4 do mesmo artigo, com redução àquelas que são as situações previstas nas alíneas a) e d) do n.º 3 atual.
Em sede de delimitação negativa, mantém-se a disposição nos termos da qual “está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação” 83 de “atos de outras funções estaduais”84; e dos “atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões” cuja apreciação se faz no quadro dos tribunais judiciais, por entroncarem, associarem-se ou consubstanciarem no exercício da ação penal 85.
O advérbio “nomeadamente” mantém em aberto a identificação de outros litígios que não se inscrevam, por natureza ou por opção legislativa, na esfera da jurisdição administrativa.
1.3.2. Entre os atos excluídos da jurisdição administrativa e fiscal figuram os “atos praticados no exercício da função política”. Não obstante o entendimento geral de que deve ser adotado um conceito restrito de atos políticos86 87, os tribunais administrativos, a partir de enunciados genéricos, declinam várias vezes a sua competência com fundamento no carácter político dos atos submetidos ao seu julgamento88.
Na exposição de Motivos da Ley 29/1998, de 13 de julio, reguladora de la Jurisdicción Contencioso-administrativa, em Espanha 89, pode ler-se:
“ La Ley parte del principio de sometimiento pleno de los poderes públicos al ordenamiento jurídico, verdadera cláusula regia del Estado de Derecho. Semejante principio es incompatible con el reconocimiento de cualquier categoría genérica de actos de autoridad --llámense actos políticos, de Gobierno, o de dirección política- excluida «per se» del control jurisdiccional. Sería ciertamente un contrasentido que una Ley que pretende adecuar el régimen legal de la Jurisdicción Contencioso-administrativa a la letra y al espíritu de la Constitución, llevase a cabo la introducción de toda una esfera de actuación gubernamental inmune al Derecho . // En realidad, el propio concepto de «acto político» se halla hoy en franca retirada en el Derecho público europeo. Los intentos encaminados a mantenerlo, ya sea delimitando genéricamente un ámbito en la actuación del Poder ejecutivo regido sólo por el Derecho constitucional, y exento del control de la Jurisdicción Contencioso-administrativa, ya sea estableciendo una lista de supuestos excluidos del control judicial, resultan inadmisibles en un Estado de Derecho .”
O facto de um ato envolver “espaços reservados à escolha política” não obsta, como destaca o Tribunal Constitucional italiano na Sentença n.º 81, de 05.04.2012, a que:
esta “ escolha tenha os seus limites nos princípios de natureza jurídica previstos no ordenamento jurídico, tanto ao nível constitucional quanto no plano legislativo; quando o legislador fixa parâmetros de legalidade, estes devem ser observados, no respeito dos princípios fundamentais do Estado de Direito ”. O “ poder discricionário, mesmo o poder amplíssimo relativo a uma ação do governo, é limitado por vínculos decorrentes das normas que assinalam os seus confins ou direcionam o seu exercício”, constituindo o respeito o respeito dos mesmos uma sua “condição de legitimidade e de validade, sindicável nas sedes próprias ”90.
Acresce ter presente, como notou ainda o mesmo tribunal, os vínculos jurídicos não descaracterizem atos políticos, mas delimitam o seu espaço de ação e, nesta medida, definem o âmbito da sua sindicabilidade.
Como refere Paulo Otero, “a politicidade da decisão administrativa, além de subordinada à Constituição – tal como sucede com a decisão legislativa –, não pode deixar de se encontrar também limitada pela lei: a Constituição e a lei são limites que se impõem a todas as estruturas administrativas, isto mesmo quando está em causa decisões dotadas de politicidade ”91.
Ondem existem limites jurídicos tem de existir garantia da sua observância e, portanto, também tutela jurisdicional 92. Onde acabam os limites da esfera de jurisdição de uma categoria de tribunais deveria começar uma outra. O que não deve é haver isenções de controlo da observância do Direito93 e de garantia de tutela jurisdicional plena e efetiva dos direitos das pessoas94. Faria mais sentido colocar a questão da medida do controlo jurisdicional a partir da medida específica da respetiva discricionariedade e dos limites jurídicos dos atos políticos 95.
1.3.3. Em sede de delimitação negativa, continuam excluídos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios relativos à “ responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes ações de regresso ”, como já referido. A solução suscita dificuldades práticas quando está igualmente em causa a responsabilidade pela violação do direito a uma decisão em prazo razoável, quer para interessado, desde logo porque tem de intentar duas ações em tribunais de ordens jurisdicionais distintas, quer para o julgador, que tem de atentamente separar as duas dimensões.
Para a opção legislativa parece ser decisiva uma razão de especialização, atendível96, embora se possa observar que o erro judiciário relevante é o erro evidente e/ou grosseiro97.
Continuam igualmente excluída a “ apreciação de litígios decorrentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas ”. Esta exclusão compreende-se pelo facto do regime laboral ser, no essencial, o do Código do Trabalho98. Assim, por exemplo, por apelo à natureza do contrato e ao regime jurídico aplicável, o Tribunal de conflits, no Arrêt 19 janvier 2004, Mme Devun eta autres c/ Commune deSAint-Chamond, n.º 3393, decidiu que “la juridiction de l’ordre judiciaire” era competente para decidir sobre o despedimento dos trabalhadores de uma associação cultural privada subsidiada pela referida autarquia e cuja atividade passou a ser assegurada por esta, uma vez que no momento da transferência da atividade, eram trabalhadores com “relações de direito privado decorrentes do contrato de trabalho inicialmente celebrado com a associação” 99.
Não podem na exclusão, ser considerados os litígios relativos à formação dos respetivos contratos, sujeita que está a vinculações intrinsecamente jurídico-públicas, associadas à disputa por vários interessados da vantagem ou bem públicos que consubstanciam os respetivos empregos e, para que a celebração do contrato não seja um obstáculo à obtenção de tutela jurisdicional, também os litígios sobre a sua validade fundados na preterição daqueles.
2. Questões relativas à competência em razão da hierarquia
Associando-se, em parte, às alterações verificadas no âmbito da jurisdição administrativa, o STA (Secção do CA), passa a conhecer dos litígios relativos a ações ou omissões do Supremo Tribunal de Justiça, do Conselho Superior da Magistratura e dos Tribunais da Relação, assim como dos seus Presidentes. Clarifica-se, ainda, a sua competência relativamente às ações ou omissões do STA, do Supremo Tribunal Militar e dos Tribunais Centrais Administrativos, incluindo os respetivos presidentes100.
Mantém-se as situações anteriores de reserva de foro relativamente às ações ou omissões das entidades enunciadas no artigo 24.º (competência da Secção do Contencioso Administrativo) do ETAF, mesmo quanto àquelas em relação às quais é mais duvidoso que se justifique, como é o caso das ações e omissões do Conselho de Ministros e do Primeiro-Ministro.
O projeto de revisão nada dispõe sobre a atual reserva de competência dos tribunais centrais administrativos “para conhecer, em 1.ª instância, dos processos relativos a atos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas”101, deixando incólume o assim disposto no artigo 6.º da Lei n.º 34/2007, de 13.08, para além da “intervenção dos juízes e dos assessores militares do Ministério Público junto dos tribunais administrativos” 102. Tal deve ser olhado com reserva103, por constituir uma espécie de ressonância de um «foro militar»104. Recorde-se, designadamente, que o artigo 211.º, n.º 3, da CRP, apenas permite que da “composição dos tribunais de qualquer instância” façam parte “um ou mais juízes militares” se estiver em causa o “julgamento de crimes de natureza militar”.
3. O funcionamento dos tribunais administrativos de círculo com juiz singular
Outra das alterações ao ETAF é a do funcionamento dos tribunais administrativos de círculo com juiz singular, exceto nas situações de julgamento alargado previstas no CPTA105, como acontece nos processos em massa e quando esteja em causa a apreciação de litígio que coloque questão de direito nova que suscite dificuldades sérias e possa vir a ser suscitada noutros litígios106. De acordo com a exposição de motivos, dá-se “resposta a anseio já antigo” e põe termo “a uma situação - reclamações para a conferência, que em nada estava a prestigiar o funcionamento da justiça administrativa” 107.
3.1. A decisão dos processos por juiz singular como instrumento de promoção da duração razoável do processo
O funcionamento dos tribunais de primeira instância com juiz singular é referenciado, nas orientações do Conselho da Europa, como um instrumento de promoção da duração razoável dos processos judiciais.
A Comissão para a Eficiência da Justiça, em Compendium of “best practices” on time management of judicial proceedings, de 08.12.2006, entre outras medidas para fazer face às pendências e aumentar a produtividade dos juízes, indica o aumento do recurso a juiz singular108. No estudo da mesma Comissão Length of court proceedings in the member states of the Council of Europe based on the case law of the European Court of Human Rights, de 31.07.2012, o uso sistemático de “multi-member tribunals (benches)” é apontado como causa dos atrasos judiciais 109110.
O funcionamento dos tribunais de primeira instância em juiz singular constitui, pois, um instrumento de promoção da duração razoável do processo, da mesma forma que o podem ser, a título de exemplo, a fixação de objetivos relativos a percentagens de conclusão de processos dentro de certos períodos de tempo por articulação do presidente do tribunal e do presidente da secção e entre aquele e cada juiz 111 112 e a limitação de atividades extrajudiciais dos juízes e tribunais113.
Esta é de resto uma preocupação na reforma dos sistemas de justiça em vários outros países. Assim, por exemplo, a Itália, interpelada muitas vezes pelo TEDH por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável (artigo 6.º da CEDH), promoveu, entre outras medidas, o recurso ao juiz singular em detrimento de a um coletivo114 ou a “uma formação de três juízes” 115.
Relativamente à questão de saber se a ação de execução de sentença de anulação deve ser julgada por juiz singular 116, o TCA Sul no Acórdão do 2.º Juízo de 05.12.2013, processo n.º 09508/12 (relatora: Sofia David), considerou que “ as regras que o ETAF e o CPTA criaram para a ação administrativa especial e para a competência da indicada formação de três juízes, são regras únicas, apenas aplicáveis a este tipo de ação, que não se alargam aos demais meios processuais e designadamente ao processo executivo ”, apontando para uma regra de decisão por juiz singular e destacando, por outro lado, a possibilidade do juiz titular do processo optar por submeter o processo a decisão alargada de três juízes, “ mormente face a uma muito especial complexidade do processo, fazendo uso dos seus poderes de adequação formal”. Não obstante o acerto do decidido, parece resultar dos preceitos relativos ao processo executivo citados no acórdão a ideia de que o julgamento do processo segue a regra do processo declarativo117. A questão está pendente de análise em sede de recurso de revista 118.
A opção pelo juiz singular no projeto de revisão do ETAF deve ser compensada pela efetiva garantia de recurso para um tribunal superior, que, em regra, o direito a um processo justo postula (salvaguardando a maior ponderação e objetividade do julgamento que a atribuição da competência a três juízes pode propiciar119). Este aspeto é destacado na Recomendação Rec(2004)20 do Conselho da Europa sobre o controlo jurisdictional dos atos da administração120, que estabelece: “ The decision of the tribunal that reviews an administrative act should, at least in important cases, be subject to appeal to a higher tribunal, unless the case is directly referred to a higher tribunal in accordance with the national legislation .”
De igual modo, em França, “la possibilite qu’un juge unique statue” é encarada como uma forma, entre outras, de face assegurar o julgamento dos casos num prazo razoável 121. Contudo, destaca-se: “ Ces procédures ne doivent toutefois jamais porter atteinte au droit au recours".
3.2. A reclamação para a conferência de decisão proferida por um único juiz sendo devido o julgamento por formação de três juízes
O julgamento por juiz singular de processos que devem ser julgados por tribunal coletivo ou em formação de três juízes 122 projeta-se sobre a validade das sentenças123.
De acordo o artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, o juiz relator (num coletivo de juízes) pode “ proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, quando entenda que a pretensão é manifestamente infundada”. E de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, cabe reclamação para a conferência dos “despachos do relator”, salvo “dos de mero expediente”, dos acórdãos que admitam recurso e daqueles do TCA que não admitam recurso de acórdão do mesmo tribunal.
As situações de julgamento alargado, às quais se passa a circunscrever a exigência de decisão por tribunal coletivo, não permitirão em regra ter por verificado o pressuposto de que depende a aplicação da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA, ou seja, a simplicidade da(s) questão(ões) a decidir, pelo que o problema da aplicação desta norma tenderá a perder relevância.
No entanto, importa ter presente que o controlo da bondade das decisões em que o juiz do processo, mesmo sem invocar aquela disposição, optava por decidir sozinho tem sido pouco eficaz.
As dificuldades quanto à questão de saber se a situação deve ser suscitada mediante reclamação para a conferência ou mediante recurso – num contexto generalizado de utilização abusiva ou duvidosa da citada disposição – vêm esvaziando a possibilidade da respetiva correção e vêm-se projetado sobre a própria garantia de recurso jurisdicional.
Considera a jurisprudência administrativa que a reclamação para a conferência é o meio idóneo para corrigir a situação (da incompetência do juiz para decidir sozinho) e que a invocação pelo juiz da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA é desnecessária, face à evidência de que (num processo de ação administrativa especial de valor superior à alçada 124) efetivamente decidiu sozinho 125.
A redação do n.º 2 do artigo 27.º do CPTA126 ao referir-se à reclamação dos “despachos” não é, prima facie, clara. No entanto, a menção aos despachos de mero expediente como não estando abrangidos, juntamente com a exemplificação da simplicidade das questões com o apelo à sua apreciação em decisões anteriores assim como a menção do carácter infundado da pretensão apontam para decisões que, em regra, não serão despachos, mas sentenças127. A forma própria de reparação do vício da sentença traduzido na preterição da colegialidade quando a lei a impõe será assim a repetição do julgamento, desta feita por uma formação de três juízes 128.
A dimensão concreta que o assunto assumiu, num contexto de adoção como prática de julgamento por juiz singular de processos que deveriam ser decididos por uma formação de três juízes129, deveria ter motivado, no mínimo, a inclusão de informação precisa, nos ofícios de notificação das sentenças, quanto à aplicação do n.º 2 do artigo 27.º.
E se é verdade que, relativamente à possibilidade da convolação do recurso em reclamação, há que atender aos interesses da contraparte ou recorrido, também é verdade que, uma vez percecionado o obstáculo processual em que se estava a converter a prática de decisão pelo juiz de processos que deveriam ser decididos por formação de três juízes130, haveria que ter promovido a respetiva correção e o teor das notificações das sentenças proferidas ao abrigo do artigo 27, n.º 1, al. i), do CPTA, o que poderia ter sido diligenciado pelos presidentes dos tribunais de primeira instância e pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais131.
Ter-se-ia prevenido a litigância não despicienda que se veio a gerar, com vários acórdãos a pronunciar-se sobre o alcance das normas referidas132, mesmo depois da publicação do acórdão de uniformização de jurisprudência (Acórdão n.º 3/2012 133) no sentido de ser devida reclamação para a conferência.
Não tendo tal sido feito e considerando o cerceamento da possibilidade de recurso perante um quadro normativo não inteiramente claro e/ou adulterado pela prática dos próprios tribunais, há, relativamente a recursos anteriores à fixação da jurisprudência pelo Acórdão do STA134 n.º 3/2012, que ser muito cuidadoso na rejeição dos recursos onde a questão se suscita 135.
Tanto mais quando é inequívoca a intenção recursória e quando a decisão por um coletivo de juízes em 1.ªinstância não equivale à decisão por um coletivo de juízes em 2.ª instância136.
Pelo que não se pode dizer que “a reclamação para a conferência prevista no n.º 2 é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis”. A reclamação para a conferência não é equivalente ao recurso e não é possível dispensar a confirmação – em concreto – da ideia de garantia adicional ou de uma garantia que acrescenta ao recurso137.
Caso a questão da incompetência funcional não tivesse sido suscitada no recurso, este certamente não deixaria de ser apreciado. Ou seja, o resultado prático da jurisprudência em causa é o seguinte:
a) O de premiar os recorrentes que omitem (e portanto, obrigá-los a omitir, se quiserem ver o seu recurso ser apreciado) como fundamento do recurso a violação do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do ETAF;
b) O de, não obstante as inúmeras vezes em que os tribunais superiores analisaram a questão, nunca ter sido emitido uma «sentença-modelo», ou sido discutido e apreciado o que é uma questão simples para efeitos de aplicação do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do ETAF.
4. A constituição de equipas extraordinárias de juízes nos tribunais tributários
O ETAF não se posiciona face às equipas extraordinárias de juízes nos tribunais tributários. De acordo com o princípio do juiz natural, “as regras sobre a jurisdição e sobre a competência devem evitar que o juiz possa ser escolhido, em cada caso, por uma das partes” 138 139. A distribuição dos processos, desde logo, entre as Secções de um mesmo Tribunal Administrativo deve obedecer a critérios predeterminados por lei. Veda a atribuição a juiz extraordinário de casos particulares e determinados.
A Recomendação n.º R (94) 12, do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Independência, Eficiência e Papel dos Juízes 140 postula:
“ A case should not be withdrawn from a particular judge without valid reasons, such as cases of serious illness or conflict of interest. Any such reasons and the procedures for such withdrawal should be provided for by law and may not be influenced by any interest of the government or administration. A decision to withdraw a case from a judge should be taken by an authority which enjoys the same judicial independence as judges .” (sublinhado nosso)
A Lei 59/2011, de 28.11, criou duas equipas extraordinárias de juízes tributários141, com juízes escolhidos pelo CSTAF, “com a missão de movimentarem os processos fiscais de valor superior a um milhão de euros pendentes nos respetivos tribunais" e, eventualmente, noutros tribunais.
Não obstante o “carácter excecional” da medida e a fixação da “duração máxima de um ano”, esta pode “ ser prorrogada pelo período necessário, por deliberação do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, se os fins para os quais as equipas são criadas não tiverem sido plenamente alcançados "142. Como não é credível que de forma plena os fins venham a ser alcançados, a prorrogação parece, assim, ser possível por tempo indefinido.
Consta da deliberação do referido, reportando-se a relatório preliminar do Governo, o seguinte: “ Em termos dos montantes envolvidos nos processos de impugnação judicial de valor superior a 1 milhão de euros, a 17 de maio de 2011, parece existir uma sobrevalorização em cerca de 50% dos valores das causas face ao valor efetivamente em disputa judicial, o que parece indiciar que a leitura simples dos valores das causas para este tipo de processos conduza a uma sobrestimação da sua relevância no conjunto do sistema judicial ”143.
Na mesma deliberação, consta igualmente o seguinte: “ Assim, se é certo não existirem evidências, nos dados analisados, que nos levem a concluir que as task forces permitem obter ganhos de eficácia e eficiência na resolução deste tipo de processos, não deixa no entanto de se salientar que, atendendo à confiança revelada pelos magistrados judiciais no funcionamento destas equipes especiais, entende-se ser desejável estender o seu funcionamento por um período temporal que, no limite, não deverá exceder 12 meses. (…)” (sublinhado nosso).
O argumento da confiança dos próprios decisores, atento o carácter delicado do que está em causa, parece ser insuficiente para fundamentar a opção.
5. Alterações com relevo no plano da imparcialidade no exercício da função jurisdicional
5.1. O direito a um processo justo, na sua dimensão funcional, compreende a exigência de “ garantias relativas à posição e às funções do juiz (terceiridade e imparcialidade)”144, de equidistância em relação às partes e aos interesses em causa no processo145 146. Associa-se aqui a ideia de «juiz justo» à de processo justo como uma das condições de possibilidade do próprio exercício da função jurisdicional147.
A imparcialidade, de acordo com a jurisprudência do TEDH, relativamente ao artigo 6.º da CEDH, exige: i) que o tribunal não seja influenciado por prejuízos ou preconceitos pessoais (imparcialidade subjetiva); ii) e “deve oferecer suficientes garantias” sobre a sua imparcialidade, de modo que fica excluída qualquer dúvida sobre a mesma (imparcialidade objetiva)148149.
Neste plano, põe em causa a imparcialidade “a intervenção a montante de um juiz no mesmo caso” 150; devendo “existir diversidade das pessoas físicas às quais é confiada a decisão” sobre um mesmo ato ou caso, desde logo “em duas instâncias diferentes”151, para evitar que o juiz seja predeterminado por uma sua anterior tomada de posição ou juízo prévio quanto ao caso152.
O n.º 4 do artigo 17.º, do Projeto de revisão do ETAF dispõe: “ Salvo no caso de recurso para a uniformização de jurisprudência ou quando tal seja necessário à observância do disposto no número anterior exigência da presença de, pelo menos, dois terços dos juízes não podem intervir no julgamento no Pleno os juízes que tenham votado a decisão recorrida.” Alarga-se, desta feita, a previsão que resulta do CPC de acordo com a qual o juiz está impedido de intervir “q uando se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz de outro tribunal, quer proferindo a decisão recorrida, quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso ”153.
5.2. Relevante no plano da imparcialidade é igualmente a alteração respeitante aos (à ordenação dos) critérios de ordenação dos candidatos ao provimento das vagas para tribunais superiores, que se traduz no esbater, ainda que de forma não significativa, do valor das tarefas ou funções não jurisdicionais 154.
Importa ter presente as possibilidades conferidas pelo estatuto dos magistrados judiciais de exercício de comissões de serviço não judiciais155 e, bem assim, de cumulação de funções docentes e de investigação (ainda que não remuneradas) 156. De acordo com o Comité de Ministros do Conselho da Europa: “ Judges should avoid any other activity outside the courts as this can compromise the appearance of impartiality and organisational performance ”157 (sublinhado).
Este não tem sido o caso português. Para agravar este estado de coisas, as tarefas ou funções extrajudiciais têm sido valorizadas ou especificamente valorizadas nos concursos de acesso à categoria de juiz dos tribunais superiores158.
A conjugação das duas realidades é suscetível de projetar-se indevidamente no exercício imparcial da função jurisdicional, pelo que a alteração referida pode ser vista como um primeiro passo no sentido de ser prestada maior atenção ao problema.
6. Conclusões
Do exposto, destaca-se em conclusão os seguintes aspetos:
1. As alterações propostas no projeto de revisão do ETAF vão no sentido de tornar mais clara a delimitação dos litígios cuja apreciação cabe aos tribunais administrativos; e de fazer coincidir o âmbito da jurisdição administrativa com o das controvérsias jurídico-administrativas.
2. O projeto de revisão do ETAF recupera para a jurisdição administrativa litígios jurídico-administrativos cometidos a outras ordens jurisdicionais e, através de disposição residual, chama a si o julgamento de outras “relações jurídicas administrativas” que não estejam já mencionadas pelo enunciado das suas alíneas.
3. No que respeita à especialização da jurisdição subjacente à disposição de atribuição de competência residual aos tribunais administrativos para conhecer dos conflitos relativos às relações jurídico-administrativas, a mesma mostra-se em tensão com as disposições legais expressas vigentes que encontram para certos tipos de litígios emergentes de relações daquele cariz jurisdições distintas.
4. Pode, no entanto, compatibilizar-se com o carácter relativo da reserva constitucional à jurisdição administrativa da referida categoria de litígios.
5. É adotada como regra o funcionamento dos tribunais administrativos de círculo com juiz singular.
6. Esta regra constitui uma das medidas inscritas em recomendações Conselho da Europa sobre o direito a uma decisão judicial em prazo razoável.
7. O julgamento em tribunal coletivo mantém-se para situações em que é necessário definir «sentenças-modelo» para a resolução de litígios em massa ou juridicamente complexos e, portanto, quando pode contribuir para agilizar a resolução de vários outros processos.
8. A reclamação para a conferência, sendo o meio idóneo para suprimir a falta de decisão por tribunal coletivo ou por uma formação de três juízes, não deve ser preclusiva do recurso quando este se funde também noutros fundamentos e tenha sido deduzido em data anterior ao Acórdão de uniformização do STA n.º 3/2012.
9. A jurisprudência do Acórdão do STA n.º 3/2012 tem a seguinte consequência prática: i) se o recorrente invocar o vício de incompetência funcional o seu recurso não é admitido; ii) se omite esta invocação, prescindindo deste fundamento, o seu recurso é admitido.
10. O direito à tutela jurisdicional efetiva postula em regra a possibilidade de uma instância de recurso.
11. O Acórdão do STA n.º 3/2012 limita esta possibilidade num contexto de conhecida utilização geral questionável ou abusiva da norma que permite ao juiz julgar AAE de valor superior à alçada se as questões que se suscitam no processo são simples.
12. O exercício da função jurisdicional pressupõe garantias de imparcialidade do juiz (artigo 6.º da CEDH).
13. A possibilidade conferida pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais de exercício de funções extrajurisdicionais juntamente com a prática da sua valorização em sede de concurso de promoção para juiz dos tribunais superiores é suscetível de projetar-se indevidamente no exercício imparcial da função jurisdicional.